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Estou com dificuldade em tolerar a frivolidade dos fait-divers. O Mundo, o país, a cidade, andam a ferro e fogo, tudo se sente como em carne viva, que me parece inconcebível e até inaceitável olhar para o lado alegremente, cedendo com indulgência ao conforto da alienação. Chega a ser chocante a atenção que é dada a coisas vãs, perante a pornográfica realidade das injustiças, das catástrofes e dos conflitos. E numa sucessão de imagens contraditórias, de um Mundo em colapso, em que uma parte sucumbe, enquanto a outra festeja, fazem-se scrolls infinitos nas redes sociais.
Entre imagens de vestidos bizarros e opulentos de celebridades internacionais, na passadeira vermelha da Met Gala, passam as imagens de crianças esquartejadas em Gaza. Mulheres de espartilho enclausuradas, por vontade própria, em vestidos que não permitem sequer caminhar, são levadas em braços pela escadaria alcatifada por seguranças de fato preto, enquanto o Estado de Israel aniquila civis aos milhares, numa terraplanagem sem critério no território da Palestina.
Entre performances histriónicas, cheias de fogo de artificio, enquadradas por imagens em movimento e bailarinos em acrobáticas coreografias, na pirosa festa da Eurovisão, aparecem-nos imagens do Rio Grande do Sul totalmente alagado pelas chuvas, com mais de um milhão de pessoas afetadas, realojadas em abrigos, à mercê da escassez e da violência.
Tricas e casos de censura vêm à tona após uma final da Eurovisão marcada pela tentativa de abafar as vozes de quem está do lado da paz e dos direitos humanos, em prol da defesa da presença de Israel a concurso, numa demonstração de que é ridícula a ideia bacoca de que este é um certame apolítico. Como é ridículo pensar que não há responsabilidades e culpas na dimensão da catástrofe que está em curso no Brasil. E se anda tudo entretido a comentar o “beef” entre Kendrick Lamar e Drake, enquanto neonazis armados andam a agredir imigrantes no Porto, devidamente respaldados pela relativização dos agentes políticos (locais e nacionais) e suas adversativas perigosas, fica mais claro ainda que esta nossa compulsão por entretenimento escapista, que alimenta uma dissociação da realidade, pode ser humana, mas é-o no sentido da fraqueza e não da sublimação.

