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A alteração das condições de uma dívida depende dos humores dos credores. Quem deve pode achá-los míopes, insensíveis e insensatos, não solidários, o que quisermos chamar-lhes. No fim, prevalecerão. De pouco adianta assacar-lhes as culpas pela nossa situação. Quando os negócios envolvem particulares, até se pode admitir que uma das partes ocultou informação ou abusou da confiança. Envolvendo países, esse pressuposto é, não apenas inútil, como ridículo.
Há algumas maneiras de sensibilizar o credor para a nossa posição. A clássica decorre de ganharmos poder negocial, por nos termos tornado um devedor tão grande que o destino dos titulares da dívida fica dependente do nosso comportamento. Uma outra hipótese será apostar na credibilidade, em ser exemplar, fazer tudo para cumprir e ser transparente na informação disponibilizada. Admitindo que se mantém a capacidade de gerar rendimento líquido, uma falha só pode resultar de o serviço da dívida estar mal calibrado ou de circunstâncias fora do controlo das partes. Em qualquer caso, é do interesse do credor rever os termos e/ou os prazos de amortização da dívida.
No quadro do plano de ajustamento, o Governo português optou pela segunda via, levando-a ao ponto do excesso de zelo. A derrapagem na execução orçamental poderia ser o pretexto para, mesmo que a contragosto, se poder invocar que algo fora do nosso controlo não estava a funcionar, dando a oportunidade à troika para mostrar que recompensa os bons alunos. Eis quando o Tribunal Constitucional (TC) lança a bomba atómica: a partir do próximo ano, não pode haver cortes apenas para os funcionários públicos e os pensionistas. Uma decisão interna que baralha as contas e limita a legitimidade e margem negocial que o Governo pudesse ter pensado usar (o que não era garantido!). A reacção da troika foi taxativa "é um problema vosso, desenrasquem-se". De uma só vez, Portugal deu um passo de gigante para se tornar numa segunda Grécia.
A saída intuitiva será estender o corte a todos os trabalhadores e a outros tipos de rendimento, incluindo o das empresas. A decisão do TC veio dar uma ajuda preciosa àqueles que no Governo andavam à procura de uma desculpa para o fazer. Há um problema: se a procura interna já vinha a cair, mais austeridade acentuaria a retracção, agravando o ciclo vicioso que redundara no não cumprimento da meta orçamental.
Admitamos, então, que, por uma vez, Passos e Gaspar abandonam o seu autismo ideológico e não "repõem a igualdade" através do aumento dos impostos sobre os trabalhadores do sector privado. O que fazer? Com excepção de algumas alternativas fantasiosas e dos delírios colectivistas do PC, todos os caminhos vão, no essencial, dar ao corte da despesa, à sempre adiada reorganização da Administração Pública (AP) e à reforma do Estado. Em vez de generalizar uma medida primária e um corte injusto, por igual para todos, é tempo de atacar de frente o problema, de ter uma política que vá para além da contabilidade. Há males que vêm por bem.
Não vai ser fácil, tantos são os interesses instalados, as teias tecidas e a nossa dependência atávica do Estado. Sem preocupação de ser exaustivo, enuncio alguns temas que precisam de ser discutidos e clarificados. De que falamos quando falamos de Estado? Até onde vai o seu perímetro? Os serviços públicos, mormente nos transportes, colide com a sua concessão a privados? A privatização da Caixa continuará a ser assunto tabu? Seria possível canalizar as eventuais receitas para um fundo de compensação para os funcionários que viessem a ser dispensados? Não há o risco de a reestruturação da AP incidir, quase só, sobre os funcionários já abrangidos pelo contrato individual de trabalho e que podem ser despedidos? Isso é bom? No lado das receitas, pode aproveitar-se para introduzir uma maior justiça na tributação? As receitas diminutas não serão compensadas pelo impacto na coesão social?
Questões controversas? A alternativa? Continuar a viver num mundo que só não é de "faz de conta" por ser caro. E ter na Grécia o destino.