Foi o acaso (ou será que o acaso, como diz Voltaire, é uma palavra sem sentido? Será que nada pode existir sem causa?) que, anteontem, colocou, ao mesmo tempo, na linha em que recebemos as fotografias libertadas pelas agências, imagens do banho de sangue de Kiev e imagens de bailarinos ucranianos a dançar no Iraque. Nas primeiras, víamos, dos mais diversos ângulos, o retrato da barbárie. Nas segundas, víamos arte, beleza, criação, paz. O par de ucranianos que dançava ballet saberia que na capital do seu país uma guerra civil matava os seus compatriotas?
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É difícil encontrar melhor metáfora para explicar o que está a acontecer na Ucrânia: sendo certo que não há anjos nesta peleja, de um lado estão os que querem construir o futuro a par da União Europeia (é bom recordar que a confusão começou justamente quando o presidente Yanukovich recusou prolongar um acordo de parceria com a União Europeia - UE); do outro lado estão os que querem manter-se protegidos debaixo da asa russa). Na Praça da Independência estão os que preferem a viragem para o Ocidente, exigindo, como ponto de partida, a saída de Yanukovich.
Drama: a Ucrânia nasceu e cresceu literalmente partida a meio, metade do povo tem uma forte influência russófona; a outra é pró-Ocidente. Daqui resulta o pior: seja qual for o resultado da batalha em curso, o vencedor terá sempre a tentação de humilhar o vencido, mostrando dessa forma de que lado está a força (a razão tem, nestas coisas, papel secundário). Vale o mesmo dizer: é bastante provável que corra muito mais sangue nas ruas de Kiev - e de outras cidades da Ucrânia onde esta batalha endurece -, até que alguma solução, boa ou má, seja alcançada.
Entretanto, os diplomatas da UE, da Rússia e dos Estados Unidos da América hão de andar atarefados a trocar recados, a medir forças, a procurar culpados e a inventar saídas para o problema. Haverá ameaças de sanções por parte do Ocidente. Haverá ameaças de retaliações às sanções por parte de Moscovo, que deseja a continuidade de Yanukovich para, uma vez mais, mostrar os dentes e bater o pé na defesa do que entende serem os estados que estão no seu "exterior próximo". Enquanto as pedras se movem num tabuleiro encharcado de sangue, tombarão nas ruas os que combatem pelo que acreditam, ou pelo que são levados a acreditar.
Recordo o grande Céline: "Nesta profissão de sermos mortos não devemos mostrar-nos difíceis; temos de proceder como se a vida vá continuar, o mais duro é isto, esta mentira". Os ucranianos fazem, por estes dias, a sua "viagem ao fim da noite" (título do livro de onde é retirada a citação). E fazem-no mergulhados numa mentira: a vida não vai continuar. No segundo maior país da Europa, a vida parou. Parou para dar lugar à morte. Os bailarinos que dançam no Iraque repararão nisso quando voltarem à sua terra.