Com a Constituição da República, aprovada em 1976, institucionalizou-se um regime democrático alicerçado num sistema semipresidencial. O presidente da República, primeira figura do Estado, é eleito por sufrágio direto e universal. Face à legitimidade reforçada que daí decorre, o presidente tem poderes paradoxais. Menores, porque somente ligados ao magistério de influência que resulta do facto de a sua voz ser escutada e poder influenciar o quotidiano. Máximos, porque tem ao seu dispor a possibilidade de, a qualquer momento, substituir líderes de executivo ou dissolver o Parlamento e convocar eleições legislativas antecipadas.
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Esta lógica, com pouquíssimos paralelos na Europa onde estamos inseridos, foi a consequência da má fama com que capitulou a primeira experiência republicana democrática - entre 1910 e 1928. Um parlamentarismo suicidário e instável gerou dezenas de governos efémeros e conduziu o país ao caos e à ditadura. Daí a medida cautelar de assentar uma solução de regime num árbitro passivo num quotidiano normal, mas interventor omnipoderoso sempre que considerar que deve usar os instrumentos letais que a lei suprema coloca ao seu dispor.
Infelizmente, porque essas decisões pressupõem sempre um enorme grau de aleatoriedade, a evolução dos últimos anos fez com que todos os quatro presidentes eleitos tenham usado a "bomba atómica" constitucional, o poder de dissolução. Umas vezes com razão óbvia, outras vezes porque não resistiram à pressão da "rua" e da opinião publicada.
Todavia, essas experiências tiveram um mérito. Fizeram-nos conviver com realidades diversas e os resultados dessas decisões fazem com que seja legítimo interrogarmo-nos sobre a utilidade do atual status quo.
Com o objetivo de contribuir para um debate alargado, que deveria ser realizado sem tabus, não posso deixar de aqui deixar um contributo desde há muito refletido. Em primeira instância, valia a pena alterar a duração do mandato presidencial.
Um único mandato mais prolongado, de sete anos, teria vantagens óbvias. Equilibraria o tom da intervenção, terminando com a tentação de condicionar os cinco primeiros anos de mandato ao mundano interesse da reeleição.
Sete anos coabitariam com pelo menos duas legislaturas e acabariam com a realidade de facto, que é a da inevitabilidade de termos sempre presidentes para uma década - todos os quatro sufragados desde 1974 foram naturalmente reeleitos. Esta "certeza" retira interesse ao debate eleitoral, empobrecendo o jogo democrático, que se deseja vivo e incerto.
Era este também o momento apropriado para repensar o equilíbrio de poderes no seio do regime. Dado que uma evolução parlamentarista ressuscitaria velhos fantasmas e chocaria com o atual momento de desprestígio relativo da partidocracia, um reforço da vertente unipessoal do jogo de poder seria mobilizadora. Um presidente com poderes acrescidos em matérias de Estado - Relações Externas, Defesa, Justiça e Segurança Interna - qualificaria a nossa democracia.
É neste contexto de falta de debate substantivo que a pugna de 2015 já começou a alimentar o país mediático. Com várias novidades. A primeira é a da grande antecipação do debate público sobre este tema, uma segunda, a que coloca, ao invés do habitual, o centro e a direita no centro da multicolaridade das escolhas.
À esquerda os dados estão jogados, António Costa, que ambicionava assumir esse desafio, viu-se empurrado para o incerto e belicoso mundo real, face à disponibilidade de António Guterres. Neste espaço o Alto-comissário para os Refugiados reinará e definirá com liberdade os seus timings e as suas circunstâncias.
Do outro lado da barricada vai valer tudo, com enorme prejuízo para a estabilidade da maioria governamental. Marcelo Rebelo de Sousa tem a sua última oportunidade, Durão Barroso mostra-se desprendido mas aguarda que os maus ventos da Europa se dissipem. Rui Rio está em todas e Pedro Santana Lopes já se inscreveu para essa maratona.
O CDS divide-se entre Marcelo e Rio, optando sempre por quem suscite mais embaraço ao primeiro-ministro e a Direção do PSD parece inclinada para o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Todavia, a esta fartura tem faltado substância. Quem já opinou passa ao lado das questões substantivos que acima elenquei e, ao contrário, opina sobre a governabilidade e os seus temas, como se o próximo presidente tivesse nessas áreas qualquer tipo de influência. Caminho perigoso, porque só poderá conduzir ou a aventureirismos voluntaristas ou a deceções acrescidas.
É igualmente bizarro que a gula na corrida para Belém pareça sobrepor-se ao único detentor do poder e ao interesse em relação ao confronto que levará à definição de quem será o próximo primeiro-ministro, principal e quase único portador de efetivos instrumentos decisórios
Para este facto só há uma explicação. O subconsciente coletivo aspira por um Messias e os putativos candidatos ambicionam sê-lo. Um sinal de alerta para os inflexíveis guardiões da Constituição. Os próximos anos vão ser turbulentos.