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É de madrugada e no quarto um vulto toca-me nos pés. Quase não o sinto, mas dá-me a sensação de que alguma coisa está fora do sítio, como se tivesse deixado o bico de gás aceso. Mas esse bico de gás fica dentro de mim mesmo e não sei como o apagar. Lá abro os olhos e vejo: o vulto que arfa junto aos pés da cama é um lobo.
Já o conheço. Preto e eriçado e de olhos fixos. É o meu animal de estimação das madrugadas. Mas não me visitava há tanto tempo, preso a uma trela sei lá em que esconderijo mais tranquilo da minha consciência, que me esqueci do que fazer para o bicho se ir embora.
Por isso o lobo tem tempo para me baralhar. A pequena ansiedade, que de outro modo me deixaria dormir, torna-se um bicho selvagem. O lobo lambe-me os pés e o arrepio sobe-me até ao pescoço.
E de seguida morde fundo: vem a ansiedade das coisas que fiz mal e das coisas por fazer, junto com o drama do que falta construir no meu carácter. De tudo o que serei incapaz de melhorar. E de como ser um homem por acabar, durante o dia um facto cheio de possibilidades maravilhosas, agora, sob o signo do lobo - entretanto sentado à minha cabeceira a observar-me de perto -, me parece uma limitação impossível. Devoradora e noctívaga.
É o lobo das desproporções. Quanto mais o deixo chegar ao coração, mais ele me baralha. Faz grandes os pequenos problemas, faz drama das tarefas corriqueiras, fragiliza-me o ânimo e a alegria. E eu acho que ele se diverte enquanto o faz: vejam como abana a cauda.
Também é o lobo das solidões. Antes de ele chegar, eu estava no quarto com a minha mulher e a minha filha. Esta dormia a inocência do berço, eu ouvia-a chuchar. Agora é só o lobo. Ele e eu e mais ninguém - e a sensação de que estarei para sempre sozinho.
Abandonado a ele, o bicho percebeu que pode saltar para a cama. Deita-se em cima de mim e põe a cabeça pesada no meu peito. É quente e fede como qualquer carnívoro. Se não o controlar, consome-me até ao sabugo.
Afago-o e digo-lhe o que sempre digo quando me visita: vai dormir, amanhã será melhor; vai dormir, deixa-me em paz. E ele gane baixinho e aninha-se e aguarda a manhã.
Quando acordo, é de dia, a ansiedade fugiu, os problemas não me parecem problemas, tão-só coisas da vida, e percebo que a Mafalda e a Teresa não me abandonaram. Nunca estarei sozinho. E saberei como domar o lobo quando voltar de noite. Se o bicho não vier com o resto da alcateia...
O autor escreve segundo a antiga ortografia