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Passou uma semana do apagão e a comunicação social, em Portugal e Espanha, só fala do assunto na procura da razão. Brotam especialistas e comentadores sobre as diversas versões, com respostas das mais científicas às mais cosmológicas. Claro que o assunto é de extrema importância. Mas se primeiro foi o susto, depois chegou a surpresa. Vi que as crianças saíram dos ecrãs e desceram à rua. Brincaram como já não víamos há muito: correram, saltaram e inventaram jogos. Foram livres no espaço público, conseguiram apanhar sol e os ritmos que a infância lhes tem retirado.
Enquanto isso, os adultos, meio perdidos no impacto da surpresa, procuravam transístores a pilhas e ideias malabaristas na busca quase irracional de alimentos e bens necessários.
A noite trouxe a luz. Vi pessoas sentadas nas escadas, à porta de casa e à luz de velas, a conviverem nas varandas. Vizinhos que mal se viam trocaram palavras, memórias, preocupações, como se a ausência de eletricidade tivesse acendido outra energia: a do encontro de proximidade e do afeto.
Sem ser comparável, a covid-19 mostrou-nos a importância do espaço público e a urgência em humanizar as cidades, em devolver a rua às pessoas. Nesse tempo, prometemos desenhar outras cidades, mas rapidamente nos esquecemos.
Com o apagão, sem carros em excesso, sem correria, sem wi-fi, sobrou tempo e a cidade ficou mais próxima, mais humana.
Talvez não precisemos esperar por outro apagão para perceber que a vida em comunidade só se constrói na partilha do espaço público, como lugar de estar. Que crescer a brincar na rua é um direito da infância. E que viver com os outros é, afinal, o que dá sentido à vida na cidade.