A Igreja Católica Apostólica Romana conquistou entre os portugueses um papel especial de partilha espiritual e social, o qual se acentua sempre que cresce o desespero da marginalização e do isolamento. A austeridade dos últimos anos é apenas um novo período em que a fé se pode tornar refém da falta de comida, de dormida e de trabalho. Generosamente, as inúmeras redes da caridade procuram suprir as falências do sistema social que cabe ao Estado garantir, incluindo em tempos de economia de guerra como os que temos vivido. Conhecedora como ninguém do país real, das pessoas e das suas coisinhas, paróquia a paróquia, repousa sobre os ombros da hierarquia da Igreja Católica a enorme responsabilidade de não ceder à tentação de se substituir ao Estado no cumprimento dos deveres básicos consagrados na Constituição da República. Se não o fizer, a Igreja corre o risco de cumplicidade com razões de ordem política que forjam o empobrecimento para melhor dispor de trabalho mais barato e mais conformado.
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É verdade que as repetidas tomadas de posição do Papa Francisco sobre a degenerescência do modelo capitalista - designadamente a globalização da especulação financeira assente na abstração desumana dos chamados mercados - são uma garantia para podermos pensar que do Vaticano não partirá incentivo algum para que o sistema de caridade da Igreja vá substituindo o sistema de solidariedade social que cabe ao Estado garantir através dos impostos e contribuições de todos os portugueses ativos.
Ainda assim, declarar esta preocupação sobre o papel da Igreja é apenas um ato de memória ao qual basta rebobinar a história 40 anos, até à ditadura que o 25 de Abril derrubou.
Nesses tempos, por entre novenas, missas e procissões, as chamadas boas famílias tentavam ganhar o Céu com os seus pobres. Era todo um sistema assistencial em que se compraziam essas almas. Tratava-se de um sistema de perdão de pecados devidamente etiquetado: sopa dos pobres, esmola dos pobres, sexta-feira dos pobres.
Para cada uma dessas almas caridosas, ter o seu pobre era como ter passaporte com visto passado para a vida eterna. Por isso, cada uma defendia com unhas e dentes o seu pobre. A ponto de um pobre poder ser defendido contra outro pobre, nessa espécie de mercado acionista em que participavam as boas famílias.
No livro "Peregrinação Interior - Reflexões sobre Deus", o católico Alçada Baptista escreve magistralmente sobre essa apropriação da política social pela caridade das boas famílias ao descrever o desespero de uma dama a quem eram rejeitados todos os pedidos de roupas e mercearias dado a sua pobre ter uma filha que ganhava 12 escudos. Não podendo ver satisfeitos os seus interesses nesse leilão de produtos para a pobreza, a dama em questão fez um pedido: "Está bem, mas então deem-me uma pobre que não seja rica".