A convocação de eleições legislativas antecipadas foi liminarmente rejeitada há cerca de um mês pelo Presidente da República, o primeiro-ministro e a maioria parlamentar que suporta o Governo, com um argumento de peso: a necessidade de salvaguardar a estabilidade governativa a todo o custo, porque se aproxima do fim o programa de assistência financeira acordado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional para o resgate da dívida soberana. O primeiro-ministro logo se manifestou pronto para o "martírio" e, num rasgo patético, declarava: "não abandono o meu país!". O chefe do outro partido da coligação renunciava ao desígnio de abandonar o Governo que todavia apresentara como decisão irrevogável. E, três semanas mais tarde, o Presidente acabaria por aceitar uma "fórmula governativa" que, de início, não queria sequer considerar, dando posse a novos ministros, na condição de o Governo remodelado submeter ao Parlamento uma moção de confiança que a maioria, ordeiramente, se encarregaria de aprovar. O folhetim da estabilidade governativa "a qualquer preço" tinha, afinal, um desenlace feliz, ao cabo de três semanas mirabolantes.
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Por pouco tempo... A estabilidade não durou mais do que uma semana, o que nada tem de surpreendente! O epicentro da crise do Governo situa-se no Ministério das Finanças, o primeiro responsável pela definição e execução das medidas que falharam, tal como reconheceu o seu anterior titular na carta de demissão em que lavrou o seu testamento político. O mesmo Governo, enfim, que não conheceu nem praticou outras políticas e nunca admitiu sequer a possibilidade de uma política alternativa. A mesma política de que o parceiro menor da coligação procurava demarcar-se "a todo o custo"... mas cuja continuidade foi obrigado a aceitar em nome da incontornável "estabilidade governativa" e do cenário previsível de uma severa punição eleitoral.
Esta equação paradoxal entre a "estabilidade governativa" e a continuidade do Ministério das Finanças é um foco infecioso da democracia política de que o novo folhetim dos "swaps" é involuntária revelação. Maria Luís Albuquerque é apenas a expressão mais flagrante e brutal de um surto epidémico que começou com Manuela Ferreira Leite e que, alimentado pela crise financeira internacional, foi ganhando crescente toxicidade sob os governos de José Sócrates e de Passos Coelho. Ao prolongar inutilmente por seis dias a agonia do secretário de Estado que anteontem se demitiu, a ministra recém-nomeada apenas mostrou até que ponto se tornou refém dos seus erros e obstinações e cada vez mais se aproxima da porta de saída por onde arrastará o Governo a que pertence.
Este jogo indecente de interminável desresponsabilização e busca de cumplicidades oculta o problema de fundo, transversal a todos os partidos envolvidos no passado e no presente da governação da República: a promiscuidade que marca as relações entre os interesses da banca e o bem comum, entre a procura do lucro e o serviço público, entre a finança e a democracia.
O adiamento das eleições legislativas continuará a agravar a precária situação presente. Porque as eleições não servem apenas para mudar os governantes. As eleições são a condição para que alguns compromissos inadiáveis sejam assumidos nos programas eleitorais e submetidos ao juízo dos cidadãos. Primeiro, a garantia de levar a cabo a verdadeira reforma do Estado que este Governo sistematicamente iludiu. Segundo, uma profunda reforma do sistema político que reabilite as instituições democráticas, reconcilie os cidadãos com a ação política e acabe com o monopólio partidário da representação democrática. Terceiro, instaurar um regime sério de incompatibilidades que liberte a política da tutela omnipresente dos interesses económicos e financeiros.