A história é absurda, mas real. Está a passar-se neste momento, exatamente 40 anos depois do 25 de Abril. Resume-se em poucas palavras a informação veiculada pela Comunicação Social. Um estudante finalista da Universidade do Algarve fez pender a bandeira nacional de uma forca, numa instalação artística, intitulada "Portugal na forca". Como trabalho escolar, esta foi classificada com 18 valores. Mas, quando esteve exposta num terreno particular, alguém se queixou à GNR, que foi lá confiscá-la. O autor foi ouvido pela Judiciária e formalmente acusado pelo Ministério Público do crime de ultraje. O processo seguiu para julgamento. A sessão decorreu nesta semana. As testemunhas pronunciaram-se em defesa do acusado e o Ministério Público pediu agora a sua absolvição. A leitura da sentença está marcada para julho.
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Os leitores podem experimentar abordar a questão de qualquer ponto de vista, que em todos eles só encontrarão o absurdo.
Se olharmos do lado do direito penal, para haver crime tem de haver dolo, ou uma negligência próxima do dolo (simplifico as tecnicalidades, mas não as atraiçoo). Onde está a intenção da prática de crime, num trabalho artístico, ainda por cima desenvolvido em contexto escolar e exposto em propriedade privada? Que fez o artista, para que se pudesse considerar que foi sua intenção ultrajar os símbolos nacionais?
Se olharmos do lado da vida corrente, pois é evidente a relação que as pessoas têm com a sua bandeira. É uma relação felizmente tranquila, normal, próxima. Por isso penduram as bandeiras às janelas nos campeonatos de futebol e aí muitas a vezes a deixam, anos a fio, sujeitas aos maus tratos do tempo. Vamos acusá-las de ultraje?
Se olharmos do lado artístico, ninguém minimamente atento pode ignorar a natureza própria da expressão artística, e a essencialidade, nela, da metáfora e do questionamento. Sendo magistrado, muito menos pode ignorar as inúmeras vezes em que, chamados a pronunciarem-se, os tribunais reconheceram isso mesmo, e bem sustentaram que a liberdade de criação e artística dependia crucialmente do direito de provocação.
Eu quero olhar, porém, do lado em que esta história mais me perturba, o do simples senso comum. Como é possível não ver, na instalação de Élsio Menau, exatamente o contrário do que sustenta a acusação? Enforcando a bandeira, como alegoria da situação-limite por que tem passado Portugal, nestes anos sombrios, o artista está a mostrar respeito, ou, mais que respeito, amor pelo seu país, não a ultrajar os seus símbolos.
Que isso não fosse imediatamente claro à GNR que recebeu a queixa e foi ver o que se passava, percebo. Mas o artista foi chamado a declarações, e logo explicou o contexto e o propósito do seu trabalho. Que o Ministério Público, estudado o caso, tenha concluído pela acusação - a acusação de um crime, entenda-se - é que não consigo conceber.
Primeiro, pelo ridículo. O mesmo Ministério Público que acusa pede depois a absolvição. Bem sei que pode ser assim, e felizmente que pode. Mas convenhamos que há maneiras mais eficazes de prestigiar a justiça.
Segundo, pelos custos. Os custos diretos - os incómodos causados ao arguido, que felizmente contou com um honrado advogado que não cobrou honorários (custo, portanto, para o advogado), as horas gastas por polícias, magistrados e funcionários judiciais. Os custos reputacionais. E os custos de oportunidade - o que todos deixaram de fazer para fazer isto, incluindo os processos judiciais sobre crimes realmente crimes, que ficaram parados à espera disto.
Terceiro, pela falta de senso. E isso, devo dizê-lo, é o que mais me aflige, no modo como ainda se lida, no sistema judicial português, com a liberdade de expressão. A liberdade quer dizer, também, liberdade de crítica e censura moral ao que se vê fazer. Mas isso é diferente de tratá-lo imediatamente como crime. Quem não o compreende, não sei como poderá compreender seja o que for.