A internet, pela sua dimensão e projeção, é uma espécie de sexto continente (Covas, 2018), mas, como sempre, constituído por sub-regiões muito heterogéneas. No início era a internet primordial, o mito libertário da internet ao serviço dos cidadãos, de uma sociedade interpares e dos seus bens comuns colaborativos. Porém, muito rapidamente, assistimos à emergência de uma internet das grandes plataformas tecnológicas ao serviço do hipercapitalismo e dos grandes predadores dos chamados mercados biface. De um lado, a multidão, os cidadãos utilizadores, cidadãos anónimos e inocentes que aceitaram uma servidão voluntária e foram capturados por um número crescente de dispositivos tecnológicos, de outro, os gigantes tecnológicos administrando uma imensa economia das multidões e gerando lucros monumentais que canalizam para paraísos fiscais e sociedades offshores. À nação-internet falta, portanto, uma classe média digital para democratizar o sexto continente.
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Meio século depois, o mito libertário da internet já se esfumou. O problema hoje, que na sua essência é um problema de extraterritorialidade e repartição do poder, reside em saber, em primeiro lugar, como regular estes mercados biface emergentes em benefício das sociedades e dos seus cidadãos e, em segundo lugar, como regressar a uma internet primordial, bem distribuída, que nos possa conduzir até à sociedade colaborativa, aos ambientes inteligentes e aos bens comuns da humanidade enquanto instrumento de realização dos direitos fundamentais, se quisermos, uma espécie de nova fronteira para o direito constitucional.
No futuro próximo a evolução mais interessante dirá respeito às múltiplas formas de bifurcação da era digital, por exemplo, entre redes distribuídas e descentralizadas herdeiras de uma internet primordial, colaborativa e cidadã, por um lado, e redes centralizadas ao serviço de um hipercapitalismo das grandes plataformas tecnológicas e empresariais, por outro.
No plano conceptual, as redes sociais sempre existiram, o que muda, agora, é a compressão espácio-temporal e a fenomenologia da interação. Isto é, na era digital estamos a fazer o caminho que nos levará da democracia representativa à democracia participativa e desta à democracia interativa. Assim, quanto maior for o espaço ocupado pelas redes distribuídas maior será a conetividade e a interatividade entre os cidadãos. A fenomenologia da interação significa que tudo muda a todo o momento e que as regras prévias que enquadram a representação e a participação não resistem à dinâmica desconstrutiva e reconstrutiva da interação permanente. No final, a eficácia, a eficiência e a equidade de uma organização social e de uma nação-estado dependerão, em cada momento, do equilíbrio dinâmico entre estas três geografias e geometrias democráticas.
É aqui que nos encontramos hoje. A virtualização da sociedade pelas tecnologias digitais, a uberização e a plataformização das atividades, a inteligência artificial e a robotização das operações, a smartificação dos ambientes e dos territórios, a pluriatividade e o plurirrendimento dos mercados de trabalho, a emergência de um imenso quarto setor colaborativo e solidário, todos estes fatores de inovação acrescentam realidade à realidade já existente (realidade aumentada), inteligência à inteligência já existente (inteligência artificial) e homem ao homem já existente (homem aumentado).
A bifurcação da era digital significa, ainda, que temos pela frente uma batalha gigantesca, qual seja, a de estreitar o abismo que se abre entre sociedades e territórios com e sem acesso às tecnologias digitais, mas, também, entre sociedades e territórios com e sem humanidade. Em pano de fundo, a mesma matéria-prima e os mesmos transformadores. Falo dos dados infra pessoais, a nossa pegada digital, e dos seus processadores universais, os algoritmos. É a sociedade algorítmica que chega.
Um longo caminho espera a nação-internet antes de se tornar independente, isto é, até patrocinar, ela própria, as redes descentralizadas e distribuídas. Até lá a nação-internet continuará a ser colonizada pelos grandes conglomerados tecnológicos que usarão e abusarão da sua posição dominante para afirmar o princípio da extraterritorialidade. Nessa trajetória, mais ou menos longa, continuaremos a ser, muito provavelmente, os idiotas úteis dos mercados biface que somos hoje e enquanto os níveis de adição digital não baixarem vamos continuar a acreditar que temos acesso direto à realidade e à verdade, sem necessidade de qualquer tipo de intermediação ou representação política, pois tudo o que é necessário já estará nos nossos diversos menus de aplicações.
Muito provavelmente, a próxima colisão desta revolução tecnológica será a propósito das políticas regulatórias para os mercados digitais. Neste sentido, os conglomerados tecnológicos não devem abusar da sua vertente extraterritorial nem subestimar os poderes do estado-administração em lidar com a revolução digital. Se do lado das grandes plataformas se pode falar em colonização digital, cuidado, pois do lado dos estados nacionais pode haver a tentação de balcanização da internet, isto é, de circunscrever uma internet nacional de acordo com a lei, a idiossincrasia e a cultura nacionais. Aqui chegados, uma última palavra para as tarefas mais urgentes.
Em primeiro lugar, é necessário criar pensamento próprio acerca da propriedade, utilização e transmissão de dados, matéria-prima essencial para a criação da cidade inteligente e criativa e a smartificação do território, muito em especial a sua agregação e interoperabilidade no quadro, por exemplo, das plataformas de metadados.
Em segundo lugar, é necessário acompanhar de perto o desenvolvimento dos equipamentos e infraestruturas relativos à rede 5G, pois trata-se de matéria essencial à cobertura digital dos territórios.
Em terceiro lugar, é necessário cuidar da inteligência coletiva territorial que deriva da interação virtuosa entre comunidades online e comunidades offline; falamos, também, de comunidades cognitivas e colaborativas que aperfeiçoam constantemente os seus modelos de inteligência coletiva e que são uma fonte inesgotável de ensinamentos úteis.
Em quarto lugar, é necessário acompanhar de perto a formação das novas cadeias de valor digitais. Eis, aqui, um campo imenso de investigação-ação para o próximo futuro, a saber, a consubstanciação de uma cadeia de valor que começa no grande universo imaterial das comunidades online e redes sociais com a germinação de uma ideia, que se transfere, de seguida, para uma incubadora digital ou espaço de coworking, que se revela e ganha reputação no espaço público e que, finalmente, se materializa num ato orgânico de criação produtiva como se tivesse voltado às origens de uma comunidade real.
Finalmente, é necessário impedir que a transformação digital seja a fonte primordial de uma cultura da incultura e de um tribalismo enraizado nas redes sociais; ao contrário, a transição digital deverá estar no coração da cidade inteligente e criativa, no combate à iliteracia digital, na promoção das plataformas descentralizadas de coprodução de serviços ambulatórios e domiciliários e, mais decisivo, ainda, na origem da escola nova, a escola de tecnologia, artes e cultura do século XXI. Em síntese, é a formação da classe média digital como agente principal do novo espírito do capitalismo e da internet primordial.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve