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A fuga de João Rendeiro à justiça, anunciada pelo próprio como uma ida sem volta, acabou. Cumpre-se o mito do eterno retorno. O fugitivo não se soube esconder, o que retira algum encanto à sua competência e mancha as expectativas de que o mistério estaria para durar. Três meses volvidos, depois de deixar Lisboa a 12 de Setembro, ei-lo apanhado num quarto de hotel de 5 estrelas, em Durban, oculto entre o luxo de umas cortinas que já vagamente havíamos visto, que o escondiam dos olhares policiais e do mundo, tal como ele é, perseguidor.
Na política e na justiça, o voyeurismo paga-se caro. A forma lastimável como o ex-banqueiro foi retratado em pijama no momento da detenção, parecendo um pormenor particular de quem até pior merecia, é um ataque público aos direitos, liberdades e garantias do nosso sistema como um todo. Sobretudo porque - pela sua magnitude e dimensão - esta detenção tinha tudo para poder ser exemplar, devia tudo a esse desígnio e acabou por ser manchada pela autoridade do próprio Estado.
A contemplação dos escombros de um homem, ainda que foragido e do qual podemos (porventura, devemos) ter a pior das opiniões, é perigosíssima. Desde logo, porque o humaniza. Perante os nossos olhos, o homem fraqueja e transige-se a um início de piedade implícita que se mistura com outros sentimentos avulsos e menos bons. Depois, porque alimenta a omnipotência de quem julga ou de quem já julgou em praça pública, incitando o chicote popular ao domínio das expectativas e à inconformidade com qualquer decisão que se venha a tomar. Adensa o sentimento de pertença a uma história que, com pormenores sórdidos q.b., se desenrola perante os nossos olhos, qual novela ou seriado. Mas, sobretudo, porque o voyeurismo criminal não tem um pingo de consideração pelas reais vítimas. Esquece-se delas, despreza-as, conta-as como sendo passado. Já tudo foi latrina abaixo quando só a vingança interessa. Podemos, então, olhar para a regulação, controlo e confluências do sistema financeiro que aqui nos trouxeram?
Indiscutível o júbilo da Polícia Judiciária (PJ) aquando da detenção de Rendeiro. Doravante, passou a existir uma espécie de autoproclamado "dia nacional da PJ". Sendo natural o regozijo, já a multiplicação e o tom de algumas declarações "abrasileiraram" o registo da detenção, à boa maneira sul-americana: na impossibilidade de pegar o criminoso pelos colarinhos, optou-se por se dar lustro ao pijama. Que o foco sirva, pelo menos, para dotar a PJ de mais e melhores condições e meios.
Para alguns políticos, a tese da cabala é mesmo irresistível. As declarações de Rui Rio e as inúmeras tentativas de as justificar pelo PSD pecam pela incapacidade de se reduzirem ao evidente. Rio acertaria na "mouche" ao ter a coragem de assinalar o desnecessário fogo de artifício. Se a isso se limitasse. Articular este argumento com a conveniência de uma eleitoralista caça ao homem é perfeitamente desastroso, porque nunca o deverá fazer sem provas. Pode haver um limite para os tiros nos pés durante a campanha eleitoral. One down.
*Músico e jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia