<p>Um juiz de um tribunal português decidiu diminuir o seu tempo de trabalho em protesto contra as reduções das suas remunerações estabelecidas no Orçamento do Estado de 2011 para todos os cargos do Estado. A decisão foi vertida num despacho proferido em processo que lhe estava distribuído, pelo que consubstanciou, um acto jurisdicional praticado no exercício dos poderes soberanos atribuídos a todos os juízes. </p>
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De acordo com os seus próprios cálculos, o juiz decidiu deixar de trabalhar o equivalente a 46 dias de trabalho normal por ano, com vista a compensar-se do decréscimo das remunerações. Nas suas palavras, essa redução obstaria a que ele conseguisse «designar as audiências de discussão e julgamento, para cerca dos tempos mínimos previstos», porquanto - frisou - passaria a dispor de «menos tempo para despachar o comummente denominado 'expediente' e remanescentes decisões». E, proferida essa decisão soberana, rapidamente a executou, pois de imediato adiou para 2011 o julgamento do processo em causa.
O «erro» deste juiz foi ter reduzido a escrito a sua decisão. Se ele fizesse tudo aquilo sem o ter escrito - como, afinal, frequentemente fazem muitos colegas seus - tudo passaria completamente despercebido e os atrasos verificados seriam prontamente justificados pelo seu sindicato ou pelo Conselho Superior da Magistratura, como já aconteceu em outras situações, nomeadamente, a quando da redução das férias judiciais.
Mas, o caso, na sua tocante singeleza, revela uma das mais preocupantes deficiências do nosso poder judicial. O poder de administrar a justiça, designadamente, a função jurisdicional, foi apropriado pelos seus titulares e é usado, muitas vezes, como arma de arremesso contra o próprio estado. Ele chama também a atenção para o poder ilimitado de que gozam os juízes portugueses, alguns dos quais são pessoas que não estão preparadas para exercer as funções soberanas em que estão investidos. Muitos deles são demasiado jovens e outros não possuem as qualidades de carácter necessárias ao exercício desse múnus. Falta-lhes maturidade, experiência de vida, sensatez, bem como a capacidade de ponderação e de avaliação das consequências das suas decisões. Além disso, em Portugal é impossível punir um juiz por desonestidade, porque esta dilui-se na irresponsabilidade e independência funcionais de que gozam. O nosso sistema judicial funciona segundo uma lógica de poder e não de serviço público. Uma parte da magistratura trocou o brio da função pela vaidade do poder.
Por outro lado, o poder judicial, enquanto segmento da soberania com a função de administrar a justiça, escapa a qualquer escrutínio democrático. Os magistrados fazem o que querem, quando querem, sem que ninguém lhes possa dizer nada, pois, senão, logo gritam que estão a atacar a sua independência - mesmo quando ostensivamente usam os seus poderes em benefício próprio. Atente-se, por exemplo, nas decisões judiciais que isentaram os magistrados portugueses do pagamento de impostos sobre uma parte significativa das suas remunerações permanentes e, mais recentemente, nas que mantêm a sua idade de reforma nos 60 anos.
Não admira, por isso, que a justiça esteja em roda livre sem qualquer regulação digna desse nome. Os magistrados escolhem-se uns aos outros, avaliam-se uns aos outros (quase sempre com a nota máxima), promovem-se uns aos outros e absolvem-se uns aos outros, completamente indiferentes ao escândalo que muitas das suas decisões provocam na sociedade portuguesa. A única coisa que parece preocupá-los é a manutenção a todo o custo dos seus privilégios corporativos, nomeadamente, a insindicabilidade dos imensos poderes de que dispõem.
Por tudo isso, o poder judicial perdeu o sentido de responsabilidade próprio de um poder soberano. Sindicalizou-se, faz greves, insubordina-se publicamente contra as leis da República e chegou já ao ponto de instaurar e prolongar artificialmente processos judiciais contra titulares de outros poderes do Estado unicamente para os manter reféns dos seus desígnios corporativos.
O resultado está à vista. Os tribunais perderam a credibilidade perante a sociedade e entraram numa perigosa via de auto deslegitimação. Basta atentar no discurso público dos seus dirigentes corporativos e sindicais.
É, pois, urgente que se tomem medidas para sustar esse processo de degenerescência. E, para começar, deveria, já na próxima revisão constitucional, substituir-se o escrutínio corporativo do poder judicial por um escrutínio democrático.