A justiça na Ordem dos Advogados
Imaginemos que os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça eram todos eleitos por sufrágio direto e universal numa lista integrada numa candidatura que incluía também candidatos à Presidência da República e a vários outros órgãos no aparelho de Estado. Imaginemos que a lista dos juízes era eleita, mas o seu candidato a PR perdia para um opositor. Teríamos então um tribunal supremo composto por juízes pertencentes a uma tendência política oposta à do presidente da República eleito, o que, em princípio, até seria saudável do ponto de vista democrático.
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Imaginemos, porém, que, de repente, os juízes começam a instaurar processos judiciais contra o presidente eleito (coisa que nunca antes tinha acontecido na história do país), com vista a afastá-lo do cargo, já que uma condenação do presidente implicaria a perda do mandato. Imaginemos que, apesar de todos os esforços (leia-se: processos instaurados), os juízes não conseguiram destituir o presidente eleito e que este, nas eleições seguintes, apoiou um candidato à Presidência da República saído da sua equipa, enquanto os juízes integraram e apoiaram outras candidaturas.
Imaginemos que a lista agora apoiada pela maioria dos juízes era liderada por um candidato que, nas eleições anteriores, integrara a mesma candidatura dos próprios juízes e que tinha sido eleito para um dos órgãos intermédios. Imaginemos que, já depois de o candidato da tendência oposta à da lista dos juízes ter anunciado a sua candidatura, os juízes lhe aplicam uma pena que o impedia de se candidatar. Imaginemos que metade desses juízes integrava a candidatura do principal opositor do candidato punido e que os restantes se dispersavam no apoio a outras candidaturas. Imaginemos que o relator do acórdão de condenação era um dos mandatários do principal opositor do candidato punido. Isso mesmo: o mandatário de um dos candidatos é o juiz que redigiu o acórdão que impediria a candidatura do principal opositor do seu mandante.
Imaginemos que os juízes atuaram no processo como polícias (pois receberam a queixa como qualquer órgão de polícia criminal), como Ministério Público (pois abriram o inquérito e acusaram) e como tribunal de primeira, de segunda e de última instância (pois o denunciado/acusado/condenado não pôde recorrer da pena que o condenou).
Imaginemos qual a designação a dar a um sistema político em que uns candidatos tivessem o poder de impedir outras pessoas de se candidatarem. Imaginemos um sistema eleitoral em que o mandatário de um dos candidatos é, ao mesmo tempo, juiz do tribunal supremo e redator do acórdão que impede o principal opositor do seu mandante de ser candidato e, assim, praticamente elimina o principal obstáculo à eleição do candidato que representa.
Caro leitor destas linhas, o que atrás fica escrito é um absurdo exercício de imaginação no que respeita às eleições para a Presidência da República Portuguesa, mas é a mais pura das realidades no que respeita às eleições para bastonário na Ordem dos Advogados portugueses.
Com efeito, o Conselho Superior (supremo órgão jurisdicional) da Ordem dos Advogados aplicou, já em plena campanha eleitoral, uma pena à candidata a bastonária Elina Fraga, que teoricamente a impediria de se candidatar, sendo que o relator do acórdão condenatório, o Dr. António Salazar, é mandatário na cidade do Porto de Vasco Marques Correia, principal opositor de Elina Fraga.
Mais: listas a vários órgãos da OA incluídas na candidatura de Vasco Marques Correia a bastonário integram cerca de metade dos atuais membros do CS, que, assim, acumulam as tarefas de candidatos com as de julgadores de outros candidatos. O próprio relator do acórdão que condenou Elina Fraga continua a acumular as suas tarefas de mandatário de um dos candidatos com a de juiz que não se considera impedido de julgar e condenar uma opositora do seu mandante. Felizmente que um tribunal independente suspendeu imediatamente a condenação, interrompendo esse enredo de zarzuela kafkiana. Mas, como iremos ver na minha próxima crónica, o absurdo da condenação é ainda mais intolerável do ponto de vista material e substantivo do que no domínio adjetivo e processual.