Diz-se, recorrentemente, que em Portugal existe uma justiça para os ricos e outra para os pobres, na interpretação de que aqueles são sempre privilegiados e beneficiados nos processos-crime que contra si correm, em detrimento dos outros. Não tenho essa percepção.
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Sucede que, na generalidade, os crimes cometidos pelos ricos não acontecem na mesma plataforma jurídica dos cometidos pelo cidadão anónimo. Este pratica, essencialmente, crimes de furto, roubo, ofensas corporais, homicídio, tráfico de estupefacientes, enfim crimes contra as pessoas e bens. Pelo contrário, os crimes cometidos pelos chamados poderosos dirigem-se, normalmente, contra o Estado, ou seja, contra todos nós. Estes preenchem o conceito de criminalidade económico-financeira que só relativamente há poucos anos passaram a ser investigados com profundidade e conhecimentos técnico-jurídicos, desde a criação do DCIAP, em contraponto com aqueles outros ilícitos clássicos, desde sempre cometidos e punidos. Há uma larga experiência e saber das autoridades policial e judiciária na investigação e julgamento deste tipo de crimes e, por isso, mais céleres na sua conclusão. Em oposição, o crime económico-financeiro suporta-se na dificuldade em detectar os comportamentos delituosos. Implicam a análise de milhares de documentos, confronto entre eles, escutas telefónicas, rogatórias a diversos países, que demoram a sua resposta. A análise financeira, fiscal e contabilística quer da empresa mãe quer das subsidiárias, que não são mais do que empresas-fantasma, é morosa e complexa. Demandam alta especialização dos magistrados e da polícia auxiliar, bem como a colaboração imprescindível de peritos nas várias áreas integrantes do conceito de crime económico-financeiro. Daí que os cidadãos anónimos, os chamados "pobres" não cometem este tipo de crimes, exactamente porque não são ricos e esta é a abissal diferença entre estes dois tipos de ilícitos, o económico-financeiro, apetência dos poderosos, e os tradicionais, clássicos, que são cometidos pelos outros. É a complexidade dos primeiros que explica, em grande parte, a profunda desconformidade no tempo necessário para a investigação e julgamento de uns e de outros. Na verdade quando um dos poderosos comete um crime que apelidamos de clássico, o período de tempo desde a investigação à decisão em julgamento é idêntico ao dos outros criminosos.
A Lei é igual para todos, diz a CRP, que sujeita os magistrados a deveres éticos de objectividade, igualdade e legalidade. Todo o arguido tem o direito e o dever de ser defendido por advogado, contratado ou nomeado oficiosamente, conforme lista fornecida pela Ordem dos Advogados, segundo inscrição voluntária. Talvez seja, então, de discutir-se a obrigatoriedade de todos os advogados participarem nas defesas oficiosas ou se recupere a discussão dos defensores públicos, advogados de defesa em exclusividade, ao serviço do Estado.
*Ex-diretora do DCIAP
O autor escreve segundo a antiga ortografia