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Habilmente, o Governo conseguiu transformar publicamente a decisão sobre a recondução da atual procuradora-geral da República numa escolha a favor ou contra o mandato único. Não se trataria de avaliar politicamente o seu mandato, mas de defender o princípio do mandato único pois este reforça a independência da PGR. Acontece que essa era uma falsa escolha. Apenas serviu para retirar carga política à decisão de não reconduzir a atual PGR. Digo-o, sendo a favor de um verdadeiro mandato único...
A garantia de independência, associada ao mandato único, reside na impossibilidade legal de renovação de mandato e no seu conhecimento antecipado pelo titular do cargo. Sabendo que a lei não permite a renovação, o titular do cargo sabe que não depende de uma decisão do poder político para continuar ou não em funções. É isto que o/a torna mais livre e independente. Mas só é assim, logicamente, se a não recondução for imposta pela lei e não resultado de uma decisão política. Ora, em Portugal ela resultou de uma decisão política. Sendo hoje claro que a lei permite a renovação, foi uma decisão política que determinou a limitação a um único mandato da atual PGR. Nada impede que o próximo Governo (desta ou doutra maioria política) e o presidente da República decidam de forma diferente. O mandato do PGR continuará assim a ser exercido sem qualquer proteção de independência adicional, pois se a lei será interpretada ou não dessa forma será apenas resultado de uma decisão política no termo desse mandato. Continuará dependente apenas da vontade política de quem estiver então no poder.
É o que resulta aliás das reações de responsáveis do partido do Governo, rejeitando a hipótese de clarificar legalmente esta matéria. Podiam até ter aproveitado a proposta de novo Estatuto do Ministério Público para estabelecer a obrigação legal de não renovação, mas não o fizeram. Invocou-se a tese do mandato único, mas pretende-se que este continue na dependência da vontade política... Não é um verdadeiro mandato único e em nada protege a independência. Apenas esconde a natureza política da decisão e, logo, reduz a independência. Esta imporia pelo menos uma justificação que assim se esconde. Apenas o PR teve a decência (como bom constitucionalista) de não invocar o argumento da independência, mas sim a vitalidade democrática que resultará da renovação de pessoas e estilos. Este é um argumento mais válido, no entanto, para a renovação de cargos políticos (como o seu) do que da magistratura (como a PGR).
A mudança na ação e perceção pública do MP foi resultado da ação de muitos magistrados, mas, perante o país, simbolizada pela atual PGR. Sendo política a decisão de não a reconduzir, é também perante o país que se desvaloriza aquela que é talvez a mais importante e necessária transformação da nossa sociedade.
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO