Perdidas que estão as ex-colónias, o ministro da Educação e Ciência mandou afixar em "todas as salas de aula" um mapa de Portugal actualizado que retrata "a nova grandeza territorial do país com a sua dimensão marítima", isto é, incluindo a proposta de Extensão da Plataforma Continental.
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Segundo a ministra da Agricultura e do Mar, quando for aprovada a candidatura às Nações Unidas para a extensão da plataforma continental, Portugal será um país em que (e cito) "97% é mar", dado que ao território habitável serão adicionados mais dois milhões de quilómetros quadrados de nada, passando o país a ser o terceiro maior a nível europeu e o 11.º a nível mundial, com uma área marítima 42 vezes superior à área emersa, ou seja, à terra firme mesmo.
Tal fantasia está estampada no mapa que os dois ministros foram há dias oferecer a Belém, ao senhor presidente da República, o qual consiste basicamente num imenso rectângulo de azuis, diante de uma pequeníssima faixa de terra amarela que resiste, ainda e sempre, ao invasor. Segundo o senhor presidente da República, distribuir o novo mapa pelas escolas "é uma iniciativa de um grande valor pedagógico, na medida em que vai dar aos nossos jovens a percepção da verdadeira dimensão de Portugal".
Condói-me sempre muito esta coisa (tão portuguesa) de fingirmos ser grandes naquilo em que somos tragicamente pequenos, um reliquat pós-imperial que bebe do mesmo poço de onde saem loas ao canídeo de raça lusitana que habita na Casa Branca, como se isso nos desse poder para influenciar directamente a política norte-americana, só porque passamos a ter "um dos nossos" em estreito contacto diário com Obama. Já que as agências norte-americanas nos apelidaram de "lixo", nada melhor do que (inspirados por Tales de Mileto) enaltecermos a magoada alma nacional, puxando para o nosso lado do leito oceânico a maior quantidade possível de lençol marítimo. Ao fim e ao cabo, foi numa parte "molhada" de Portugal que Camões salvou a nado a nossa obra maior, como foi para uma parcela (vamos dizer) "líquida" desse antigo território ultramarino que o Padre António Vieira ameaçou dirigir-se para discursar (como Santo António) a um vago grupo de conterrâneos nossos que (pouco importa agora) calhavam de ser peixes. O passo seguinte será somarmos à taxa de natalidade as fanecas, as sardinhas e os carapaus que residem naquela implícita parte do "território", e candidatarmo-nos aos fundos europeus como um dos países mais populosos da Europa.
Eu, porém, se fosse o Governo não me aventuraria assim pelos incertos domínios de Neptuno com tanta leviandade; raramente os homens se dão bem quando desafiam os deuses. Conta o Grande Livro que quando tentaram construir uma torre que tocasse os Céus, Deus irou-se tanto com tal ousadia que os pôs a falar entre si em línguas distintas de modo a que não se conseguissem entender, e se atrasassem na construção.
Para mim resulta claro que Neptuno não aprova o mapa. Desde Jonas que vem devolvendo, vaga após vaga, tudo quanto lhe pareça mamífero (lobos-do-mar e golfinhos) e este inverno tem sido particularmente rigoroso ao demonstrar que uma fronteira existe e é para ser cumprida: o homem é que ousou evoluir de peixe para anfíbio, não volte agora a ocupar os lugares que abandonou.
Porque a não ser essa a razão, só se Neptuno nos está a tentar dizer (com o galgar das ondas) que face ao que tem sido o crónico desaproveitamento do oceano - com mais de mil quilómetros de costa, Portugal importa mais de 75% do peixe que consome, por exemplo -, mais honesto seria se os ministros mandassem afixar na parede do hemiciclo um mapa em que 100% do país fosse água, tanta tem sido a que os vários governos têm metido em matéria de construção na orla costeira, energias hídricas renováveis, investigação em recursos marinhos e, principalmente, na política comum das pescas.
Terem vendido o abate da frota, por exemplo.
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