Não há santos entre os personagens públicos das histórias políticas dos povos e das nações. Todos sabemos disso e por isso mesmo a aclamação unânime que merece a vida e obra política de Mandela só pode resultar de alguma virtude situada para além do bem e do mal. Como a de ter usado o poder para perdoar.
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Talvez tenha sido esse uso do poder a transformá-lo num líder mais religioso ou filosófico, transportando-o da luta armada a que o obrigou o "apartheid".
Sofrer, combater, ser preso, torturado e finalmente conquistar o poder e ser capaz de começar por administrar o perdão aos carrascos (inesperada e até incompreensivelmente para a maioria do seu próprio povo ) é a linha da vida de Nelson Mandela. Provavelmente fruto de uma lucidez ímpar que as circunstâncias de uma longuíssima prisão acentuaram a ponto de compreender a dupla natureza da ignomínia, a do regime e a dos carrascos. De resto, descrita pelo próprio numa lógica sem fuga possível: "Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor da pele, da sua origem ou da sua religião; para odiar é preciso aprender; e, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar".
Clint Eastwood, que tratou afincadamente o tema da convivência racial em diversos filmes, não perdeu a oportunidade de fazer de Nelson Mandela o herói à americana de "Invictus", num magnífico enredo histórico em que o realizador valoriza sobretudo a responsabilidade individual do então presidente da África do Sul no processo de derrube dos resquícios do "apartheid" no último reduto dessa ignomínia, a da seleção de râguebi anfitriã do Campeonato do Mundo.
E, no entanto, há seguramente mais que os valores de ordem individual a sustentarem figuras como a do presidente Mandela, que, no plano político, protagonizam viragens da própria humanidade.
Provavelmente é da convergência ímpar desses valores da pessoa com a de princípios coletivos e até universais, como o da igualdade entre raças, que resulta uma consequência para ação política que pode englobar calma e determinadamente a possibilidade de morrer pela causa.
De algum modo, o próprio Mandela esclareceu ao tribunal que o estava a condenar a prisão perpétua da irrevogável razão ética que o assistia e da incalculável força que o animava para tirar todas as consequências para a ação de um princípio superior: "Lutei contra a dominação branca, lutei contra a dominação negra. Acalentei o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais; é um ideal para o qual espero viver e realizar; mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer".
Conseguiu.