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Nos tempos da outra senhora, a menina de cinco olhos era usada para castigar os meninos cábulas ou malcomportados. Nas escolas e nos lares, o uso da palmatória marcou gerações. Felizmente, o país mudou e as marcas avermelhadas nas palmas das mãos passaram a conceito retrógrado. A palmatória é hoje um objeto museológico; não passa de (má) recordação....
Os disparates, os comportamentos criticáveis, continuam hoje a precisar de corretivo, mas de outra índole. E é avisado não os branquear....
O Governo, por exemplo, está farto de cometer erros. De conceção e de execução. Prometeu menos e melhor Estado e, sem coragem para afrontar interesses instalados, tem optado pela via mais fácil: o assalto aos bolsos dos portugueses, despreocupado e insensível quanto ao alastramento da miséria social. É difícil encontrar um acumulado de disparates maior. E se a crise se resolvesse pela receita angariada através da publicação de um compêndio da asneira, bastaria editar um manual dos erros da última semana para obter excelente maquia.
O coro de críticas à atuação do Governo é, pois, legítimo. Denota, no entanto, uma inaudita vontade de aplicar a menina de cinco olhos a Passos Coelho & Ajudantes do Executivo.
Convém ter bom senso.
Atraiçoar a memória por conveniência é comportamento rasteiro. Afinal, este Governo, teimoso e experimentalista em doses não recomendáveis, foi legitimado pelo voto democrático, em socorro a uma bancarrota produzida pela via da megalomania. E não pode abrir-se espaço à fuga às responsabilidades de alguns dos que empenharam o país, hipotecários de muitas gerações futuras (o escândalo das parcerias público-privadas na primeira linha).
Impõe-se, pois, não alimentar um efeito matilha, misturando princípios éticos com o voo de rapina sobre o Poder!
O povo está a passar um mau bocado? Está. Tem o direito e a obrigação de se indignar? Tem. É-lhe legítimo pressionar o Governo, forçando-o a mudar o azimute? É. Todas as asneirolas grossas justificam um pedido de mudança, o estabelecimento de outras prioridades na governação, mais compreensíveis e através das quais fique claro que as mordomias têm de ser transformadas em pó.
Aqui chegados, haja ponderação no protesto, sob pena de um risco de perigosa instrumentalização.
"Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!". Funciona um slogan assim, espalhafatoso; leva manifestantes para as ruas, sim; mas dispõe de um quê de inconsciência.
Goste-se ou não, o país vive pendurado na assistência internacional. Não tem dinheiro para mandar cantar um cego. Pode e deve rejeitar colocar-se de cócoras perante os credores. Não pode nem deve é armar-se aos cucos e entrar pela deriva de um valente manguito à troika!
É bem-vindo um movimento de pressão para o Governo procurar alternativas mais justas e mais bem explicadas de austeridade. Recusar tudo, gritar contra tudo, já é delirar.
O país dispensa uma crise política. Já viveu demasiados anos em irresponsabilidade e demagogia inimputável.
O tempo deve ser de busca de consensos, de inflexão do Governo em alguns disparates, mas simultaneamente de recusa de sebastianismo, mesmo que ele seja alimentado a partir de uma ideia de governo de iniciativa presidencial para o qual já há quem se posicione de babete posta.