A dura comunicação feita ao país pelo presidente da República, a propósito do Estatuto dos Açores, afiou as unhas de muita gente.
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Sobretudo de quem esperava que, à primeira oportunidade, o chefe de Estado servisse fria a sua vingança aos que, por interesses políticos de ocasião (Cavaco dixit), tinham obrigado o presidente da República a engolir um sapo de tamanho considerável. Pois a oportunidade chegou - e Cavaco Silva não a aproveitou para incomodar quem supostamente o havia incomodado.
Ontem, na tradicional Mensagem de Ano Novo, Cavaco Silva não pintou com cores muito carregadas o ano que acaba de nascer. Argumentos e indícios não lhe faltavam: se desejasse colocar uns pauzinhos na engrenagem da governação de Sócrates, fá-lo-ia sem dificuldade. No ponto em que a situação do país se encontra, o chefe de Estado teria, se aquela tivesse sido a sua opção, dado o pontapé de saída para uma crise institucional de que Portugal não necessita e em que os portugueses não estão minimamente interessados.
Ao proferir um discurso curiosamente muito menos intenso do que o do ano passado (ver páginas 2 e 3), Cavaco Silva mostra que não pensa - e sobretudo não actua - o país em função dos maiores ou menores engulhos políticos que lhe vão sendo colocados à frente. É uma atitude responsável, antes de tudo mais. Mas que não deixa de ter, igualmente, uma interessante leitura política. Se as coisas correrem mal a José Sócrates, o presidente da República poderá sempre dizer que ele é o último culpado. É a versão institucional do "deixa-os andar".
Até agora, Cavaco soube dar um empurrãozinho ao Governo quando sentiu que ele se impunha (caso, por exemplo, dos elogios à contestada ministra da Educação). Ou soube ficar calado e recentrar as baterias para o que interessa, quando, como no caso do Estatuto dos Açores, os equilíbrios com o Governo ficaram periclitantes, para dizer o mínimo. Com Mário Soares na presidência da República, as coisas seriam seguramente bem diferentes - e para pior, como nos lembram os anos em que o ex-chefe de Estado fazia oposição na rua ao então primeiro-ministro Cavaco Silva. Moral da história: Cavaco não encarnará a oposição que José Sócrates obviamente não tem no Parlamento e fora dele.
De resto, o chefe de Estado deixou na mensagem alguns recados de circunstância e um apelo à unidade para vencer as dificuldades. Sem exagerar na palavra "crise", Cavaco exigiu "verdade" à classe política, para "a existência de confiança" entre governantes e governados, temeu "o agravamento do desemprego e o aumento do risco de pobreza e exclusão social" e falou da "quase estagnação económica" em que o país "tem estado mergulhado. Nada que não soubéssemos já.