O meu irmão senta-se à mesa dos apóstolos, disse-nos no outro dia a Branca enquanto o via esgueirar-se para o pátio. A mesa dos apóstolos fica debaixo da magnólia, a maior, a mais bela do país, a que em breve se tornará num clarão de brancura por conta das flores.
Resguardado pela magnólia, o meu irmão junta-se por estes dias à mesa corrida dos apóstolos. Eu bem queria ver como o meu irmão adulto, o meu irmão um ano mais novo, se juntou à mesa de desconhecidos como um menino e por lá ficou, amigo, controleiro e ajudante. Mas, por estes dias, os apóstolos estão de férias.
Pensei escrever sobre o conceito de mesa, agora que o país se senta para celebrar o Natal. É uma bela coisa estranha, sentarmo-nos à mesa. E também deve ser uma bela coisa estranha, descobrir quando terá sido a primeira vez em que nos erguermos do chão, rasteiros, para tomarmos as refeições frente a frente numa tábua, sentados em bancos ou cadeiras. Sempre me fascinei pelas origens, por descobrir a anormalidade das coisas normais, dos factos corriqueiros.
Mas amanhã é Natal - e o meu irmão está de férias porque os apóstolos estão de férias. Nos últimos meses, almoçou todos os dias com eles. E observou-os enquanto restauravam a fachada do prédio, abandonada há quarenta anos. Eles assobiam e ouvem Tony Carreira enquanto misturam o cimento, instalam o capoto e pintam as paredes. O Martim acompanha-os, dá-lhes ordens e incentiva-os. O meu irmão agora é mestre de obras - nenhum atraso lhe escapa e não perdoa falhas.
Ao fim do dia, regressa a casa corado, cheio de sol na cara, e até mais magro. Dá muito trabalho ver trabalhar. Regressa de tal forma realizado que mais parece ter subido aos andaimes e corrigido ele mesmo a decrepitude do prédio. Mas penso que a felicidade não é uma questão de alvenaria. É uma questão de mesa.
Todos os dias, o Martim almoça com os trolhas e confessa-lhes os amores, as embirrações e os entusiasmos. Eles terão outro tanto para desabafar. A Branca espreita-o pela janela enquanto passa a roupa a ferro e diz "Lá está ele sentado à mesa dos apóstolos".
Eu acho que a toalha sobre a tábua de engomar, lisa e limpíssima, devia antes cobrir a outra mesa, onde o meu irmão e os homens comem. E acho que todas as mesas deviam ser um pouco como esta, todas assim tão limpas enquanto apóstolos sujos e desgastados partilham o pão do corpo e o pão do espírito.
Talvez seja esta a origem da mesa, agora que penso: um sítio onde qualquer pessoa pode descobrir um irmão.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

