A mesoeconomia dos territórios-rede (III): A sociologia do risco e a criatividade das redes
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No primeiro artigo refletimos sobre os territórios-rede e apresentámos vários exemplos possíveis, no segundo artigo expusemos algumas características de uma teoria do ator-rede. Neste terceiro e último texto vamos refletir sobre a sociologia do risco e a criatividade das redes.
O grande paradoxo do nosso tempo pode ser formulado do seguinte modo: para amortecer os choques assimétricos da globalização precisamos de projetos coletivos mobilizadores para os territórios mais atingidos, todavia, o nosso individualismo metodológico e radical impede-nos de levar a bom porto este compromisso absolutamente indispensável. Entre forças centrípetas, globais, que impõem um mundo plano, e forças centrífugas, locais, que puxam pela desmultiplicação e fragmentação dos territórios, este duplo movimento é pleno de consequências positivas e negativas. O risco destes efeitos externos é evidente e requer uma atenção muito especial, uma sociologia do risco.
Qual é a atitude correta face aos territórios em risco? Vamos dessacralizar o território para passar a ser uma variável endógena do processo político-económico ou vamos montar uma forma de governação mais cooperativa e reflexiva que preserve o essencial dos territórios e acrescente a sua resiliência e criatividade?
Como já dissemos, o território-rede é um middle level concept que permite, a uma escala mais restrita, levar a cabo a arte da comunicação e o trabalho transdisciplinar necessário ao entendimento das diversas linguagens em presença. Levámos tão longe a especialização funcional e as linguagens funcionais que hoje os territórios mal conseguem comunicar. Esta falta de comunicação e cooperação gera muito risco para os territórios e muitas externalidades negativas associadas. Vejamos alguns aspetos do problema e desta relação paradoxal entre risco e criatividade das redes.
Em primeiro lugar, a sociedade é atualmente um assunto interpretativo como se fosse necessário prever o presente. Ser concreto no mundo de hoje exige um grande esforço teórico. A economia criativa deve estar á altura da complexidade, da contingência e dissimulação da sociedade contemporânea. Muitos efeitos são não-desejados e não-intencionais. A sociedade é cada vez mais invisível. As novas categorias do social, a sua matéria-prima, são a virtualidade, os riscos, a exclusão, a oportunidade, a simulação e a
dissimulação, a representação. O sistema tal como está proporciona tanta contingência como liberdade, por isso é que ele é tão cognitivo.
Em segundo lugar, o Estado-administração é pouco competente para dar conta de tanta diferenciação funcional, por isso, devemos procurar uma organização territorial que não se encaminhe para o centro, que seja mais multiterritorial e multidimensional, pois a plurissignificação da realidade é um potencial extraordinariamente enriquecedor. Não devemos sobrecarregar mais a administração pública, pois sabemos que a sobreocupação da política é um artifício para fugir à responsabilidade. Quanto mais cedo ela for um par entre pares melhor para todos, a começar por ela própria.
Em terceiro lugar, estamos, claramente, perante uma sociologia do risco de espetro largo. Não é apenas um problema de risco moral e free raider devido à multiplicidade de subsistemas funcionais, corporações e grupos de pressão que sobrevivem à falta de lealdade social. A tipologia dos riscos vai subir com a economia das redes. São os novos custos de contexto, os custos de exposição nas redes, os custos de transação da economia das redes e plataformas, são os custos de desinformação, são os custos do narcisismo que as redes promovem. Há uma sociologia do risco que importa avaliar e escrutinar sob pena de pôr em causa o potencial de criatividade dos territórios-rede.
Em quarto lugar, a política local não é um exclusivo do poder local. A comunidade política local pode ser maior ou menor do que o poder local instituído. Trata-se de recriar uma rede de espaços público-privados-colaborativos para lá da política convencional, da política estatal ou municipal, isto é, temos de construir comunidades políticas de autogoverno cooperativo à medida dos nossos interesses quase portáteis e criar uma racionalidade operativa com procedimentos e sistemas de negociação, processos iterativos e incrementais que sejam capazes de reduzir gradualmente os horizontes de incerteza e o risco associado.
Em quinto lugar, a normatividade da legitimação dá o lugar à performatividade dos procedimentos. Já não são os pressupostos, a ideologia ou as experiências similares que legitimam a nossa ação, é o modelo de ação e os seus resultados que legitimam a nossa conceção das coisas. O modelo conceptual dá lugar ao modelo performativo. Da cooperação como conceito essencial à ação cooperativa como modelo de produção de resultados cooperativos e colaborativos. Os meso-sistemas dos territórios-rede fazem parte deste modelo performativo, porque estabelecem novas ligações, um novo
reticulado, um novo modelo de geogovernança, se quisermos, comunidades inteligentes em que a cooperação entre pares é o novo imperativo categórico.
Em sexto lugar, a montagem de uma rede supõe um empreendedorismo social e político que é anterior ao empreendedorismo económico propriamente dito. Sabemos que os grupos dominantes têm instrumentos materiais e cognitivos para obter a cooperação alheia na base da sua própria visão do mundo e dos seus interesses. Os territórios-rede, porém, estão obrigados a aprender a empreender e, sobretudo, a explicitar na boa direção o conhecimento tácito que os territórios já possuem, despertando o potencial de aprendizagem, interação e inovação que subjaz aos territórios e atores locais.
Em sétimo lugar, durante décadas dominou o estruturalismo e, nesse contexto, a presença constante do Estado sempre a exigir conformidade. Contudo, em sociedades fragmentadas, cada vez mais virtualizadas, polarizadas e em tensão permanente, os discursos deterministas e o controlo de autoridade suscitam uma forte reação e fazem cada vez menos sentido. Um individualismo metodológico diz-nos que a experiência da minha liberdade tem tanta força como a experiência das nossas determinações sociais. Doravante não é tanto a sociedade que produz o sujeito, é o individuo-sujeito mais qualificado que produz a sociedade. É uma nova relação entre o ator e o sistema que está em formação e em que o risco a criatividade são as duas faces da moeda.
Em oitavo lugar, a virtualização da sociedade aumenta a plurissignificação da realidade, logo, mais risco e mais criatividade. Doravante, conhecer é uma operação parecida com suspeitar. Os problemas têm ângulos mortos e no ver há muita invisibilidade. Os novos espaços sociais da realidade aumentada e virtual têm mais significado e contexto do que conteúdo e objetividade e essa perspetiva obriga-nos a considerar os atores antes dos sujeitos, a composição das relações sobre a distribuição dos lugares, a passar das estruturas para os processos, dos sujeitos para as ações, do individuo para o sistema, da linearidade para a recursividade, da segurança para a contingência. Ou seja, todo o espaço se tornou simbólico, múltiplo e relacional e aberto a compromissos muito abertos. Saibam as políticas do território tirar proveito de processos que libertem os espaços políticos dos antigos constrangimentos.
Em nono lugar, a rede revela no seu modus operandi uma dupla faceta. Os fluxos que por ela circulam têm um duplo efeito, ora de sustentação e construção de território, ora de desestruturação e desconstrução de território. O território-rede é, por isso, um território móvel em permanente movimento, que desliga e religa territórios, ou seja, de
certa forma os territórios são, também, reciclados e refuncionalizados. A rede como um tipo de estrutura social e as redes como cadeia de associações estruturada a partir de relações de poder e processos de agenciamento. Esta é a matéria da Nova Sociologia Económica. O território é uma conexão-rede, as suas sucessivas religações dão origem a novos territórios. Por tudo isto, imagina-se a importância e a criatividade de um ator-rede no que diz respeito à administração dedicada da sua função e institucionalidade correspondente.
Por último, as redes são uma abordagem integrada do seu espaço-território, logo, a coerência das redes contempla o espaço vivido (domínio das práticas), o espaço percebido (domínio do conhecimento), o espaço concebido (domínio dos valores). As possibilidades heurísticas da noção de rede só ganham vida e sentido através de múltiplos processos e cadeias de associações, sempre provisórios. Os processos de cooperação e colaboração não são uma qualidade virtuosa que preexiste ao jogo social, eles são um modo de operação e só se justificam se forem capazes de produzir resultados positivos. Sabemos que os recursos não estão igualmente distribuídos na tentativa de obter a cooperação. Aqui, também, é necessária muita criatividade e uma liderança esclarecida. Todo este processo cooperativo e colaborativo será decisivo na compreensão das instituições e dos mercados que marcam a vida de uma região. Aquilo que parece um equilíbrio é um processo de reconhecimento e legitimação da hegemonia e do poder. Há tanto poder detido como poder consentido.
Nota Final
Estamos claramente no pós-estruturalismo, as estruturas já não têm força suficiente para criar e impor ordens locais e, dessa forma, estabilizar expectativas à sua volta e permitir um horizonte de racionalidade à nossa frente. Mas é justamente por causa de toda esta evidência pós-estruturalista, anárquica e caótica, que é urgente montar um estaleiro político-social para a construção social dos territórios-rede sob pena de tudo se desmoronar á nossa volta. Quero crer que as gerações mais novas trarão maior consistência à formação de comunidades inteligentes e mais criatividade ao desenvolvimento da mesoeconomia dos territórios-rede. Tenho a esperança de que o Estado e o mercado, a ciência, a tecnologia e as redes ensaiem novas experiências colaborativas e reinventem a criatividade da mesoeconomia dos territórios-rede. A política convencional envelheceu, está sobrecarregada, deve descentralizar uma parte das suas responsabilidades nos territórios-rede que podem funcionar perfeitamente como
buffer institutions e redes criativas e, assim, resolver uma parte importante dos custos associados ao advento da sociedade colaborativa.