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Esta crónica é íntima. Mas todas as crónicas são íntimas. Esta crónica é para mim. Mas todos os textos que são para mim podem também ser para os outros - eu não sou, em absoluto, diferente do meu semelhante.
E embora queira guardar só para mim as coisas preciosas que julgo serem de fabrico próprio - um segredo, como os gastronómicos, bem guardado -, suponho que tanta outra gente acarinhe tantas outras preciosidades. Nisto, até o que nos é original sê-lo-á da mesma maneira.
Convém ambicionar a beleza. Nesta construção imponderável que é o nosso espírito, a luta está em preservar o bom e em afastar o mau. A banalidade desta afirmação, quando posta em prática, é das determinações a mais exigente.
Imaginem um texto que se escreve dentro de nós. É fácil qualquer um escrever um mero texto. Alterá-lo, rescrevê-lo, melhorá-lo - torná-lo verdadeiro e belo -, esse sim, é o verdadeiro labor. Tanto mais que exige discernimento, esse exercício ficcional, quase literário, de olharmos para nós mesmos na terceira pessoa. Aquele ali, que sou eu, agiu bem?
Isto é tão difícil que é coisa de uma vida, coisa para o resto da nossa pequena eternidade. No fim, que construção de nós mesmos, que texto temos para entregar? Face ao despudor da morte, teremos vergonha de nos mostrarmos nus?
Idealmente, mostraremos o melhor texto interior face às circunstâncias, ao temperamento, e aos acasos. De preferência, um que se tenha livrado das paixões irracionais, pulsões quase mitológicas, com existência autónoma, que pretendem entrar no nosso texto e desarranjar-lhe os parágrafos. De preferência, um texto puro mas não demasiado limpo - fazem falta algumas contradições, um certo divertimento e um toque de chama. De preferência, por fim, uma disposição interior que a ninguém prejudique - e, mais, que a alguém ajude. Ter no nosso espírito um texto assim não seria um mau desenlace.
Isto ocorre-me simplesmente porque sim. Mas também porque, certas vezes, mãos exteriores tentam usar uma caneta de tinta infecta para perturbar o nosso texto interior. Nessas ocasiões, convém aguentar firme e dizer: a mim, escrevo-me eu.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia