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A minha ignorância sobre futebol é de estimação. Estimo-a muito, dá-me um trabalho doido. Ainda agora, em conversa com amigos, falou-se de um Rúben Amorim que, diz-se, vai partir não sei para onde, não sei porquê - e isso é bom para alguns, mau para outros. Os alguns com quem falava achavam bom porque eram do Benfica e a saída de Rúben Amorim beneficiava-os.
A minha ignorância sobre futebol é obstinada, talvez a melhor demonstração de uma inflexibilidade que eu só conheço em mim e noutros da minha espécie. Os jumentos. Faço ideia vaga do que seja um fora de jogo. Sei que há paixões em jogo, dentro e fora de um relvado que tem por nome as quatro linhas. E vou sabendo que só há uma maneira de falar de futebol: muito alto, motivo pelo qual, mesmo sem querer, sou forçado a ouvir uma ou duas exaltações por ano.
Agarro-me a esses pequenos fios de conhecimento, o ter ouvido ao longe a notícia de uma glória ou uma desgraça (às quais, se acrescentar o adjectivo futebolístico, sempre me parecem menos gloriosas e menos desgraçadas) -, agarro-me bem, com todas as forças da minha ignorância, e faço o eco.
O eco é a maneira de me disfarçar. Dizem-me em conversas de circunstância: “este ano, vamos ver de novo o Sporting a brilhar!” E eu respondo: “de novo a brilhar...” Ou outros: “o Benfica agora tem todas as condições para vencer!” E eu: “para vencer...” E por fim: “Saindo o Amorim, estamos safos!” E eu, claro: “estamos safos...”
Disfarço-me discreta e profundamente num eco por dois motivos. Primeiro, porque ninguém percebe que não estou a falar, tão-só ecoar. É fácil os outros acharem que concordam comigo quando eu concordo com eles. Segundo, porque sinto aquela coisa incomodativa e persistente chamada peso na consciência. Sei que o adjectivo futebolístico sempre suaviza o drama, mas ignorância, ainda que futebolística, é ignorância.
E vai funda, a minha ignorância. Um dia, assistia aos anúncios antes de um filme em que um jogador dava uns toques na bola. Pareceu-me que tinha jeito.
“Quem é?”, perguntei. Responderam-me que era o Messi.
Creio que a minha ignorância tem o tamanho da minha inveja. Passou-me ao lado a paixão imensa de quem gosta de futebol. Nunca um golo me suprimiu os batimentos cardíacos, nunca senti a felicidade de conquistar um campeonato. E mesmo quando o Éder fez aquilo (deixo vago para não errar), alegrei-me porque a alegria, nesse momento, era uma forma de ser português.
Se o conhecimento é uma maneira apaixonada de ver as coisas, a ignorância é uma maneira desapaixonada de ver as coisas. Excepto a minha, valha-me isso. É que eu estimo tanto esta ignorância, mantenho-a com tanto carinho, que só pode ser paixão. Como quem gosta de futebol, é decerto amor à camisola.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)