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Apesar de portista, não consigo esconder o meu incómodo face à maneira deficiente como Luís Filipe Vieira (LFV) está a gerir, em benefício do seu clube, a exploração do passamento de Eusébio. À primeira vista, a campanha da trasladação para o Panteão parece uma boa ideia. Mas não é. LFV devia ter a grandeza de dizer que o lugar de Eusébio não é num cemitério de segunda - que demorou 284 anos a construir e onde não couberam Cunhal, Saramago, Sá Carneiro ou Aristides Sousa Mendes -, ao lado de ditadores como Sidónio ou Carmona, mas sim nos Jerónimos, onde estão Camões, Vasco da Gama e Pessoa.
Compreendo a hesitação no melindroso assunto da mudança do nome do Estádio da Luz. A venda dos direitos de naming pode render um encaixe que não pode ser comprometido por uma decisão leviana tomada a quente. Mas por que não aproveitar a ideia do ano de luto e aprofundá-la, rebatizando a Benfica TV com o nome de Eusébio TV e pondo-a a emitir a preto e branco durante o período de nojo?
E espero que LFV já tenha indagado junto do patriarca a possibilidade de abertura de um processo de santificação. Os quatro golos da reviravolta contra a Coreia do Norte (potência do futebol mundial que partilha com o Lesoto o 138.° lugar no ranking FIFA, acima do Afeganistão e atrás da Palestina) podem contar como o milagre que abre as portas da beatificação. E sempre se pode ponderar o jejum portista de 19 anos, que coincidiu com o período em que Eusébio jogou pelo Benfica, como hipótese de segundo milagre que confirma o acesso ao verdadeiro panteão - o dos santos.
Assumindo a responsabilidade de estar vivo, e por isso de escrever o que penso, compreendo que o Benfica tenha carregado nas tintas da emoção, até para se redimir da forma pouco elegante como tratou no final da carreira (encerrada na 2.ª Divisão, com a camisola do União de Tomar) o genial futebolista a quem deve parte de leão da sua mística e glória. E também compreendo que a imprensa popular e as televisões tenham amplificado até ao patamar da histeria a comoção pela morte de um ídolo - mas não posso deixar de sentir o contraste com o tratamento discreto reservado à morte de Albino Aroso, pai do planeamento familiar e responsável por termos uma das taxas de mortalidade infantil mais baixas do Mundo.
Eusébio foi um excelente futebolista. De primeira água. Dos melhores de sempre no Mundo. E consta que também um tipo porreiro. Nem menos, nem mais que isso. Não é o Che Guevara. Teve o azar de nascer na época errada, o que o privou do conforto da riqueza e fama de que desfruta Ronaldo - e permitiu que o Estado Novo se apropriasse indevidamente da sua imagem, transformando-o em "património nacional", usasse o seu enorme talento como ópio para o povo e tirasse partido do seu local de nascimento e cor da pele para ilustrar a ficção de um Portugal uno e indivisível, do Minho a Timor.
Depois da missa do 7.° dia, quero dizer que Eusébio merecia mais e melhor sorte. Que foi grande e merecedor do nosso agradecimento e admiração. Estou certo de que logo, ao fim da tarde, a vitória lhe vai ser dedicada, seja quem for que ganhe. É nossa obrigação relembrar e honrar os mortos. Mas também devemos deixá-los partir. Lenta e docemente. Mas deixando-os partir.