A crise não nos deve anular pilares da vida em comum, designadamente aqueles em que assenta a sociedade democrática em que escolhemos viver ou ainda aqueles em que assenta a lógica do nosso pensamento através da qual reconhecemos como boa a justiça das métricas em que baseamos as nossas trocas e atribuímos valor - de mercado também, pois claro... - ao que vendemos e compramos, incluindo a essencial força de trabalho.
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Um dos pilares irremovíveis do regime democrático é seguramente o do respeito pela lei. Diria mesmo que a fronteira entre o que é legal ou ilegal não pode ser transposta por nenhuma ordem de razões, ainda que algumas delas possam ser consideradas morais.
Um pai que rouba pão para dar de comer a um filho a seu cargo pode ter boas razões morais para o fazer, mas elas não o abrigam da ilegalidade e de ter de vir a pagar por essa ilegalidade. Robin dos Bosques, que roubava aos nobres ricos para dar aos plebeus pobres, numa espécie de versão primitiva da luta de classes, poderia ser o personagem ideal para encarnar o justicialismo de que todos estamos sedentos para pôr cobro a escândalos como o do BPN, mas permitir esse tipo de justiça seria deixar a moral à solta pelas ruas e às mãos da espada mais diligente.
Não, em democracia o que possa, ou não, ser legal tem de estar antes do que possa, ou não, ser ilegal.
Eis o que torna chocante o esforço feito por Paulo Portas para nos confortar com a moralidade dos cortes nas pensões de viuvez acima dos dois mil euros.
Simplesmente porque, tratando-se de pensões resultantes do dinheiro que cada cidadão desconta, a questão não se coloca sequer entre ricos e pobres. Porque cada qual descontou segundo o valor relativo do seu salário e assim sendo adquiriu a pensão como poderia ter adquirido qualquer outra propriedade. E o direito à propriedade individual, seja ela qual for, não pode ser confiscado pela métrica da moralidade relativa.
Outra das tentações da crise é a de nos anular o sentido das proporções e nos paralisar perante o risco ou até perante o pensamento "out of de box".
Vejamos o caso da curtíssima baixa do IRC de 25 para 23% com a promessa de andar entre os 17 e os 19% em 2016. Uma das poucas medidas que visam engrenar a nossa economia pela coluna das receitas, apresentada como a grande reforma mas cujo valor está longe de poder fazer Portugal competir, por exemplo, com países da Europa do Leste, nossos adversários diretos em vários mercados de produtos e serviços.
O argumento é que mesmo esta curtíssima baixa do IRC vai subtrair aos cofres do Estado qualquer coisa como 70 milhões de euros.
Como estamos em crise, ninguém pergunta o óbvio: e se perdêssemos 140 milhões em IRC quanto ganharíamos a mais em investimento?