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A minha Mãe morreu há seis meses. Nos dois antecedentes, esteve internada duas vezes num hospital do SNS. Da primeira, saiu de lá com uma bactéria no nariz. Da segunda, onde entrara com uma pneumonia por aspiração (as coisas que aprendemos na vida), teve alta mal curada e praticamente já não abandonou a cama da residencial. Tinha 94 anos, mas podia ter 14, 34, 64, ou 84. Hoje as certidões de óbito não nos dizem do que morrem as pessoas. É uma coisa anódina, apenas com as circunstâncias de tempo e de lugar. Horas antes, vira-a, mais aflita que o costume - problemas respiratórios - e a expressar-se sobretudo pelo olhar e pelas mãos. O que posso afirmar é que retenho dessa tarde o mesmo brilho que conheci em sessenta anos nos olhos da minha Mãe. Uma "pequenina luz bruxuleante" de vida, e não de morte, que talvez ela intuísse ser a última, e eu não. Agarrou-se sempre mais à vida do que alguma vez me agarrarei. Tratava-se. Ia às consultas. Fazia exames. Tomava o que lhe prescreviam. A morte sobreveio calma e naturalmente. Mas não é da minha Mãe que quero falar. Pela terceira vez, julgo, a Assembleia da República aprovou a sua versão da lei da eutanásia, ou da morte medicamente assistida, a maior contradição de termos que me ocorre. Irão acrescentar ao juramento profissional a que os médicos estão obrigados que, para além de defenderem a vida humana até ao seu fim natural, também assistirão, ou seja, cuidarão da morte a pedido do paciente injectando-lhe tranquilamente o veneno que o juramento de Hipócrates veta? No nosso ordenamento jurídico existe, há mais de uma década, o chamado testamento vital que apoiei quando a dra. Maria de Belém Roseira o propôs. Se não o usam, não temos culpa. Já à eutanásia, condeno-a sem ambiguidades amorais ou "legais". Como escreveu o dr. Passos Coelho, no "Observador", "há algo de perverso em se poder usar o conceito de dignidade humana para executar um regime público que ajuda a pôr fim à vida". O que Marcelo fizer quando a lei chegar a Belém terá, na presente conjuntura política, social e cultural, um valor meramente simbólico. Como o da lei, aliás, e que precede a sua aplicação. Por isso subscrevo as palavras do escritor francês Michel Houellebecq que faço minhas. "A partir do momento em que um país - uma sociedade, uma civilização - legaliza a eutanásia, a meu ver perde qualquer direito ao respeito. A partir daí, passa a ser não apenas legítimo, mas desejável, destrui-lo. Para que uma outra coisa - um outro país, uma outra sociedade, uma outra civilização - tenha oportunidade de aparecer".
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Jurista