Não está de moda defender o sector empresarial do Estado. Mesmo tendo em conta o modo como os senhores dos mercados, como a agência de notação Moddy's, têm vigarizado a alma que lhes deu o ser, ou seja, a concorrência, não há muitas almas dispostas a questionar soluções de venda apressada e ao desbarato das empresas do Estado ou por ele participadas.
Corpo do artigo
Pior: nesta vertigem, já pouco nos importa como chegámos aqui. E, no entanto, nem tudo foi obra da ideologia, da Direita, do Centro ou da Esquerda. Acreditem que muito disto se deve exclusivamente à gente que os partidos - e nem sempre os governos, pois é!... - foram colocando nas administrações das empresas do Estado.
"Jogada" foi como Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD por Viana do Castelo, classificou, e muito bem, o facto de a CP ter anunciado o fim da ligação ferroviária entre o Porto e Vigo para melhor negociar com a Renfe, a empresa congénere espanhola, o pagamento integral dos 450 mil euros de custos do troço entre Tui e Vigo. É o mínimo que se pode dizer deste tipo de comércio em que as populações são usadas como reféns para fins tão mercantilistas.
Do alto do seu poderio, a Renfe respondeu como se à porta lhe tivesse batido um pobre diabo disposto a tudo pela mais pequena das esmolas. Ora se é feio e eticamente deplorável que no comércio entre privados alguém use outrem, um cliente, por exemplo, além do mais indefeso, para sacar benefício de uma negociação, o que dizer de quem assim actua em nome de uma empresa que é de todos nós, incluindo dos compatriotas que usam essa ligação que a nossa CP ameaçou fechar até... até sacar os tais 450 mil euros que a Renfe vai desembolsar para que tudo fique como dantes.
Francamente, não acredito que algum Governo seja capaz de encomendar um conto do vigário para enganar outro Governo. E, por extensão deste pensamento, não estou a ver que alguma administração de uma empresa do Estado se abalance conscientemente a um acto do tipo. Por isso, a única conclusão que posso tirar é esta: a actual economia de guerra em que os chamados mercados nos estão a mergulhar pode levar gente séria, mesmo decente e até de bom senso, a embarcar no pior do ideário daquilo a que a Igreja Católica tem chamado de capitalismo selvagem. Ou seja: usar tudo e todos, incluindo gente indefesa, para obter ganhos, sejam eles contabilizados na coluna do deve ou na do haver.
Estamos, assim, chegados a essa hedionda fronteira da condição humana em que o salve-se quem puder pode deixar de ser um acto de desespero para se transformar num acto corrente da vida.
Mas, uma vez que estamos aqui, antes que atravessemos essa fronteira talvez possamos reflectir sobre duas coisinhas muito simples deste caso: terá a autonomia regional galega pesado decisivamente na decisão da Renfe e do Estado espanhol em satisfazer os interesses das populações locais que usam esta pequena mas, pelos vistos, necessária ligação ferroviária transfronteiriça? Pode o Estado português permitir que dele se tenha uma imagem de "jogador de póquer"?