Enquanto a Rússia parece unida, face à Europa e à questão da Geórgia, a União Europeia continua visivelmente dividida. Como se diz nos corredores de Bruxelas, desdramatizando, é um "desacordo quanto aos meios, mas não quanto aos princípios" (sic).
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Que "princípios"? Respeitar a integridade territorial dos novos e velhos estados, resolver pacificamente os conflitos fronteiriços, envolver organizações regionais e a ONU, sempre que haja estatutos contestados. Os mesmos membros da EU e da OTAN dizem que o Kosovo não foi "excepção" a este raciocínio, porque passou por um longo período de "transição", sob forma de protectorado internacional, mandatado pelas Nações Unidas, e optou por uma independência também vigiada. Por outro lado, o estado a que formalmente pertencia, a Jugoslávia, deixara de existir, e toda a sua estrutura ficou, de facto e de direito, sob negociação.
E quais os "meios", frente à Rússia? Diplomacia "musculada" ou alusões, mais ou menos vagas, a fórmulas militares? Sanções ou diálogo "diferente"? Negócios como antes, ou "suspensão"? Revisão completa de relações, ou mera microdiscussão técnica? Inquérito policial a "quem disparou primeiro", na Ossétia do Sul, ou cheque em branco à versão das partes? Conselho de moderação a Saakashvili, ou conselho de moderação a Medvedev/Putin?
Claro que os "meios" diferentes reflectem "perspectivas" diversas.
Citando o MNE português, para uns a Rússia é um "inimigo", e para outros representa apenas um "risco". Ou seja: uns olham-na como ameaça permanente, insolúvel sem conflito, outros encaram-na como ameaça episódica, resolúvel sem força.
Uns entendem-na como actor estranho ao "Ocidente", enquanto que os outros a consideram uma parte (porventura "estranha", a espaços) do mesmo Ocidente.
Uns lembram as guerras em que a velha Rússia participou, ao lado das potências europeias e "ocidentais", outros os conflitos em que se opôs a elas.
Mas o que pensa a própria Rússia? Para muitos, o discurso de Putin do ano passado, em Munique, anunciou a filosofia.
Segundo o ex-presidente e actual chefe de Governo, depois acompanhado pelo antecessor/sucessor Medvedev, pelo MNE Lavrov, pelo ex-MDN Ivanov, e por declarações e artigos de vários generais e ex-generais, os princípios basilares são, sem distinção de precedência:
a) Rejeição da ideia de uma "hiperpotência" como árbitro do sistema internacional.
b) Reconhecimento dos "interesses privilegiados" de Moscovo, em áreas do Mundo onde os russos vivem, como comunidade importante.
c) Admissão de um plano de protecção desses "interesses", e de resgate de russos em risco, fora de fronteiras, sempre que não haja outros meios.
d) Adopção, pela Rússia, dos grandes princípios da "guerra contra o terrorismo", mas incluindo aí a luta aos grupos alegadamente "nacionalistas", como a guerrilha chechena.
e) Admissão de que a "soberania" da Rússia é o valor supremo.
f) Possibilidade de intervenção "dissuasora" no exterior, face a um perigo real e iminente.
g) Inclusão da protecção da economia nacional e dos recursos energéticos, nas grandes linhas da política de defesa e segurança.
Para sustentar estes fins, a reforma militar de que vimos falando é um elemento. Mas esta é apenas parte de uma mudança mais geral. Nas palavras do ex-comandante da frota do Mar Negro, almirante Eduard Beltin, "muitos não percebem que as forças armadas não podem ser melhores, ou piores, do que a sociedade que as fornece e forma".