Em 1968 tentaram praxar-me, mas não deixei. Cheguei a andar à pancada, mas não deixei. Em 1972 tentaram que fosse fazer a guerra colonial e também não deixei. Tive de ser asilado político em Bruxelas por meia dúzia de anos e de ter a sorte de acontecer o 25 de Abril, mas não deixei. Poderia eu evocar agora estas recusas, transformá-las em superioridade moral, e surfar a onda justicialista que pretende antecipar a arguição do único sobrevivente da tragédia do Meco, antes da justiça se poder pronunciar?
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Poder até podia - ou não fosse real a capa de ontem do "Correio da Manhã", fazendo rebentar essa onda gigante: "Dux arguido por homicídio" - mas não conseguiria porque outra onda igualmente gigante, a da memória coletiva do JN, acabaria por me engolir por falta de respeito.
Detesto a falta de estética dos desfiles universitários, abomino as praxes exercidas com recurso a métodos de submissão e, aproveitando as atuais circunstâncias de crise, estaria a favor de uma campanha que tentasse levar os pais dos caloiros a poupar no traje universitário. Talvez fazendo ver que a capa e batina já não vale o que valia para o que mais conta em termos de estatuto social: emprego qualificado.
Em contrapartida, tão bárbaro quanto a barbárie que qualquer voyeurista poderia espreitar no areal do Meco é seguramente essa onda justicialista que alguma Comunicação Social está a provocar, atingindo o único sobrevivente da tragédia e os seus direitos de reserva e eventualmente de defesa. E, para o efeito, tomando em mãos um papel que deveria caber em exclusivo à investigação policial e ao Ministério Público.
Neste papel desnaturado, não é do grau de informação e da credibilidade das fontes que se trata, mas sim do que cabe aos meios de comunicação sempre que um ato de justiça merece tratamento público. E, nesta matéria, o entendimento só pode ser um: denunciar quando possa estar a ser denegada mas resistir a substituí-la pela justiça de rua, que é também a das audiências.
Por mais que encontremos motivos para criticar a aplicação da justiça, não ser intransigente nesta separação de águas é caminhar alegremente para um pantanal em que a própria democracia pode morrer afogada.
Claro que o clamor do povo - e das audiências - é por mais e melhor justiça.
Claro que, quando a justiça exibe pecados mortais, mais o povo clama por mais e melhor justiça.
Claro que, não funcionando a justiça, o povo pouco ou nada se importa por quem e em nome de quem a justiça possa ser feita.
Claro que, aqui chegados, o povo delira com os julgamentos populares, sobretudo quando os réus são poderosos ou simplesmente antipáticos.
Cuidado com a democracia.