A ONU e a liberdade dos povos
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O direito dos povos à autodeterminação procede de uma linhagem ancestral que se filia nas correntes democráticas da Idade Média mas que apenas será reconhecido como um verdadeiro princípio normativo no dealbar da modernidade, pela mão dos filósofos da era das luzes. Disso se ocupará John Locke, nos "Dois tratados do governo civil", onde elabora sobre o "direito de resistência" como fundamento legitimador da "Revolução Gloriosa" inglesa, no final do século XVII. O direito à autodeterminação viria mais tarde desempenhar um papel fundamental na reconfiguração do Mundo, após a Segunda Guerra Mundial. Acolhido pela Carta (1945) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), o "direito dos povos a disporem de si próprios" seria depois inscrito no artigo 1.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, aprovados pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966. A formulação do direito à autodeterminação é idêntica nos dois documentos. Ambos proclamam que são os povos que "determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural" e que "podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais", no respeito por uma "cooperação económica internacional, fundada sobre o princípio do interesse mútuo e do direito internacional".
Apesar dos condicionalismos resultantes da intensa rivalidade entre os blocos político-militares liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, o mapa político do planeta experimentou mudanças substanciais donde haveria de emergir uma nova ordem internacional, baseada no Direito, que eliminou da "face da Terra" as extensas possessões coloniais que os antigos impérios europeus ainda detinham em África e na Ásia. Da libertação dos povos colonizados iriam também beneficiar os povos das próprias potências colonizadoras. As lutas de libertação dos povos das colónias - de que resultou mais tarde a atual Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa - deram um contributo decisivo para a desagregação da ditadura de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, e para a implantação da democracia com a Revolução de Abril de 1974.
O fim da Guerra Fria marcou o início de uma fase de ambiguidade e experimentação de que iriam surgir as mais audaciosas operações de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas, dispersas por todos os continentes, da Colômbia aos Balcãs, à Serra Leoa, à Indochina e, por fim, a Timor-Leste. Embora de curta duração - entre a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a invasão do Iraque, sem mandato das Nações Unidas, em 2003 - o intenso ativismo que fugazmente caraterizou essa época, coroado pelo êxito da construção de um novo estado democrático e independente em Timor, ficaria como exemplo supremo dos amplos recursos que a comunidade internacional pode mobilizar para a causa da justiça e da paz entre os povos. E serviu também como demonstração do papel que a ONU desempenharia se houvesse um intuito sério de a reformar profundamente, para que pudesse cumprir a missão reguladora que nenhuma outra instituição internacional tem condições para assumir, numa ordem mundial cada vez mais débil e fragmentada.
Hoje - com o recuo do Direito e a resignação à lei do mais forte nas relações internacionais, num Mundo capturado pela globalização económica e pelos interesses dos mercados financeiros, sob a ameaça do terrorismo e da radicalização nacionalista, indiferente à tragédia dos refugiados que se recusa a acolher -, a solidariedade entre os povos e o direito de assumirem livremente a condução do seu próprio destino assumem um significado mais amplo e uma urgência premente. O princípio da autodeterminação continua na ordem do dia.