O reaparecimento mediático de Cavaco Silva em dose dupla, texto e entrevista televisiva, reforçou todas as controvérsias que não permitem ao PSD assumir o conforto de nenhum legado histórico dos seus líderes desde Sá Carneiro. É evidente que lideranças como as de Francisco Balsemão e Mota Pinto são absolutamente relevantes, até tendo em conta o percurso histórico e a inquestionável dimensão pessoal de ambos. Mas o drama adensa-se quando o PSD procura referências para apresentar ao país, e só encontra Cavaco Silva-Passos Coelho como cartões de visita e Durão Barroso-Santana Lopes como cartas de rejeição. Líderes que proclamaram oásis em pleno défice ou que foram para além da troika, líderes que abandonaram o barco para utilizar portas giratórias sem período de nojo ou que fundaram partidos concorrentes no mesmo espaço político.
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Qualquer reaparição de Cavaco Silva a querer impor a sua relevância ao país relembra-nos porque continua a ser o presidente mais impopular de sempre, apesar de ter tido nas mãos o maior período de poder de qualquer político no nosso país, em sucessivas eleições vitoriosas que só o primeiro mandato presidencial de Jorge Sampaio conseguiu interromper por uma década. Depois de tantos anos, ou apesar deles, Cavaco não compreende, nem aceita. Cavaco teima em falar para o país, mas não quer diálogo com Portugal porque não o entende. O legado de Cavaco Silva é a amargura.
Quando a motivação maior para escrever um texto nasce de uma "revanche", o ponto de partida é, desde logo, inaugurado por um mau princípio. À indelicadeza de António Costa na tomada de posse do Governo, referindo-se tacitamente às maiorias absolutas de Cavaco como espelhos de um poder absoluto, o ex-presidente responde na terceira pessoa como um alter ego de si, entre pedaços de ironia ressentida, esquecimentos selectivos e recordações da casa laranja. O "timing" não foi obra do acaso. Apesar de referir que manteve o texto em lume brando para esperar pela apresentação do OE, as palavras escritas soltam-se pela oportunidade de lembrar à nova liderança do PSD que não o pode esquecer, condicionando-o. Na primeira semana de Luís Montenegro, aproveita o vazio, não permitindo que Marcelo seja o único presidente a fazer oposição. Tece críticas certeiras à incompreensível demora do processo de transição interna de poder no PSD, não resistindo a tentar humilhar Rui Rio de uma forma pouco digna. Nada de novo para quem sempre fez oposição a Francisco Balsemão ou Mota Pinto, as duas referências indiscutíveis de poder no PSD pós-Sá Carneiro. O eterno ajuste de contas do ressentimento e azedume. É este o papel que Cavaco Silva continua a escolher para impor aos portugueses o seu legado na História.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista