A pedagogia cívica vale a pena
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Aceitei com gosto o convite para assegurar uma coluna de opinião no JN. É um regresso. Aqui comecei, já lá vão mais de três décadas, a colaborar na Imprensa. Fi-lo no quadro da página "Cultura", que era dirigida por Nuno Teixeira Neves.Este grande jornalista tinha também uma coluna, chamada "Ser cidadão". Se o evoco, é não só para prestar homenagem como também para me colocar sob a sua inspiração. Nada é mais atual, hoje, do que o tema da cidadania, como participação informada e ativa de todos nos assuntos que a todos dizem respeito.
Refleti bastante sobre o plano em que deveria situar a colaboração que agora inicio. A pura opinião política - que muito prezo e militantemente pratico - já me parece suficientemente representada, inclusive na indispensável pluralidade de pontos de vista, no JN. Talvez acrescente mais valor se escolher outro plano, que não é menos necessário à melhoria da cidadania. O qual será ajudar a colocar questões relevantes e atuais de natureza política, recorrendo à informação e às interpretações disponibilizadas pelo vasto conjunto das ciências sociais. Um exercício de pedagogia cívica, pois. Não para dar lições seja a quem for, mas para contribuir, com conhecimento, para o debate público.
Portanto, o objetivo será menos "impor" aos leitores a minha escolha política, mas propor-lhes dados e pontos de vista que os ajudem a formar as suas. Claro que a minha visão das coisas, mesmo enquanto cientista social, é influenciada pelos valores que subscrevo (como socialista, cosmopolita, europeísta e admirador do diálogo inter-religioso). Mas o conhecimento e a informação permitem formar melhor a opinião e o comportamento.
Dou dois exemplos da mais imediata relevância. O primeiro, no plano europeu; o segundo, no nacional.
A Comissão Europeia acaba de atualizar a avaliação dos desequilíbrios económicos dos 28 estados-membros. Quatro estão sujeitos a programas de ajustamento: Grécia, Chipre, Portugal e Roménia; por definição, estão numa situação de grave desequilíbrio. Mas a Comissão lista mais três, a Croácia, a Itália e a Eslovénia. E, quanto a países desequilibrados (embora não "excessivamente"), pois temos mais 11, entre os quais a Alemanha, a Espanha, a França, a Holanda e a Finlândia. Sim: o leitor ou leitora leu bem: a Alemanha, a Holanda e a Finlândia, esses implacáveis juízes dos "pecados" dos outros.
Ora, o que quer isto dizer, senão que temos pela frente um problema europeu, e não apenas português - que requer, portanto, uma solução europeia, e não apenas portuguesa? E não quererá dizer também que os critérios hoje vigentes na União (incluindo o que leva a considerar que a Espanha já não está excessivamente desequilibrada quando a sua taxa de desemprego ronda os 26%) fazem parte do problema?
Eis o que leva ao segundo exemplo, nacional. O "Manifesto dos 70" constata o mesmo que o prefácio do presidente ao último volume dos seus "Roteiros". A questão mais grave é o peso e perfil da dívida. Ela aumentou (leu bem: aumentou) em mais de 30 pontos desde a chegada da troika; e mais de metade desse aumento deveu-se exclusivamente ao facto de a taxa de juro ser superior ao crescimento nominal do PIB (isto é, não teve nada a ver com défices).
Para gerir a dívida nas regras atuais, são precisas duas coisas: ritmos de crescimento e saldos orçamentais como nunca tivemos; e manutenção, senão agravamento, das restrições orçamentais. Mas a segunda coisa impede a primeira. Para pagar a dívida, temos pois de renegociar as condições do pagamento: se pagarmos menos juros e tivermos mais tempo, teremos condições para crescer, e só crescendo conseguiremos pagar.
A alternativa não é, pois, entre pagar e não pagar. A alternativa é entre ter ou não ter condições mínimas para pagar. Isto é o que devemos discutir; e o Manifesto tem o grande mérito de nos convocar para essa discussão.
Diga lá: a pedagogia cívica vale ou não vale a pena?