<p>A pequena Alexandra leva meia-dúzia de palmadas, é empurrada, atirada para um canto, só porque clama pela irmã - ouve-se, nitidamente, "quero ir à Valéria". Não é tanto a cena que choca, é o contexto. Uma criança abruptamente arrancada ao convívio da família que foi sua durante anos. Atirada para junto da mãe biológica, que não conhece. Em ambiente estranho - a casa , a "nova" família, a língua. Ainda por cima maltratada.</p>
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Qual murro no estômago, as imagens interpelam quem as vê. Desautorizam a indiferença, quanto mais a neutralidade. Ganham dimensão ao ponto de exigirem uma tomada de posição. As palmadas entram-nos pelos olhos dentro como se fossem uma tortura. Raciocínio imediato: se a mãe tem essa atitude perante as câmaras de televisão, qual não terá quando se desligarem. Rapidamente concluímos que aquela mãe não sabe ser mãe e damos por nós à procura de indícios que suportem a nossa convicção.
O maniqueísmo nunca foi bom conselheiro. Se as imagens no ecrã, por mais impressivas que sejam, constituíssem prova bastante para um julgamento, poupar-se-iam rios de dinheiro, mas não se faria justiça. O caso da menina russa não se presta, de todo, a leituras apressadas, a preto e branco - os bons cá, a malvada lá. Na medida em que envolve direitos, é bem mais complexo do que aparenta.
A primeira reflexão que suscita é a do valor da ligação biológica. O princípio que prevalece, até prova em contrário (caso se detecte negligência ou maus-tratos) é frágil, parecendo ser sólido, se não contempla os direitos da criança. O laço de sangue - é preciso dizê-lo - esgota-se no parto. Quem o quer conservar, rega-o com afecto, carinho, amor. Sem eles, não é um laço, é uma fatalidade; pode até tornar-se prisão. Deve, pois, exigir-se à mãe a prova de que é capaz de agir como tal. Mas não converter a ausência de prova numa pena perpétua.
Toda a gente pode reabilitar-se - usufruir dessa oportunidade também é um direito. O problema reside em como o respeitar assegurando o interesse da criança, que deve prevalecer. É aqui que entram modalidades alternativas - institucionalização e entrega a uma família de acolhimento ou a pessoas idóneas, como é o caso do casal com quem Alexandra viveu durante mais de quatro anos. Não se tratando de adopção, a família funciona como "depósito" provisório da criança. A nenhum dos actores é permitido sonhar com um vínculo definitivo, já que a situação é periodicamente reavaliada. Na edição de ontem do JN, o psicólogo clínico Eduardo Sá sintetizou, numa só frase, o dilema criado : "É dizer à família: 'prestem um serviço, mas não se apaixonem'". E é roubar à criança a única coisa de que ela precisa: que se apaixonem por ela.