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É impossível fugir ao tema, por muito que ele seja repetitivo. Orçamento para o próximo ano aí está, sem que nele se vislumbre alguma esperança de recuperação da crise em que nos encontramos. É a austeridade pela austeridade, sem margem de manobra, como não se cansa de afirmar o ministro das Finanças. Avizinha-se um ano bem pior do que aquele que estamos a viver, na avaliação das entidades e das pessoas mais credíveis. Nada nem ninguém consegue demover o Governo da sua irredutível obstinação em ser "mais papista que o Papa", no dizer de Mário Soares.
A questão de fundo continua a ser a incapacidade de Passos Coelho e Vítor Gaspar para verem além da estrita cartilha da troika. No fundo e sempre a alegada "falta de capacidade de manobra". Mas quem viu a entrevista de Maria João Rodrigues à SIC Notícias na passada quinta- -feira percebeu que não é assim. Com uma rara simplicidade e uma bem sustentada explanação do ambiente que se vive nas instituições europeias, deixou a nu a incapacidade do Governo para fazer diferente.
Mas quem é Maria João Rodrigues? Para quem possa não o saber, Maria João Rodrigues é uma portuguesa conselheira da Comissão Europeia desde o ano 2000, parte integrante de muitas das missões da UE, desde a negociação final do Tratado de Lisboa, à agenda da UE para a globalização, passando agora pelas respostas para a crise da Eurozona. Como referiu na entrevista, acaba de fazer uma ronda pelas capitais europeias e acompanha há doze anos os conselhos europeus.
E que disse ela de relevante? Tudo. Falando com o conhecimento e a experiência de quem está do outro lado, disse aquilo que muitos já têm dito, mas que, as mais das vezes, é desvalorizado e levado à conta da pura crítica política. A grande diferença é que Maria João Rodrigues falou com o saber de quem está por dentro, de quem participa na construção da estratégia dos interlocutores do Governo. E isso torna incontornável a sua avaliação.
Sem hesitações, afirma que há espaço para que o programa de ajustamento a Portugal não se faça só pelo caminho traçado pelo Governo. "Sem crescimento é difícil reduzir a dívida e o défice". Nunca deixando de vestir a pele do observador interessado na recuperação de Portugal, foi dizendo que as coisas mudaram na União Europeia e que "o programa proposto pela troika deveria ser realinhado com o novo quadro europeu".
Mas o mais preocupante é a constatação de que o Governo se tem empenhado em relatar os aspetos positivos do cumprimento do programa, sem mostrar os seus impactos negativos.
"Há o risco dos impactos negativos superarem os impactos positivos causados pelo programa em curso; não há informação suficiente sobre os aspetos negativos". E disse aquilo que todos sabemos, menos o Governo - que não conseguiremos crescer e simultaneamente reduzir o défice e a dívida. E que por isso é preciso discutir à cabeça novas condições de financiamento para chegar a custos de financiamento normais; que é possível apresentar uma boa carteira de projetos ao banco europeu de investimento face ao reforço dos seus meios para o efeito; e que devem discutir-se metas credíveis para a redução do défice e da dívida. "O que está a acontecer é a destruição da capacidade para recuperar e crescer".
Mas, então, por que não procura o Governo encontrar a capacidade de manobra que diz que lhe falta? Por não saber mover-se e não saber ousar. "O nível troika não é o nível relevante. É uma equipa operacional que obedece a instruções... É antes ao nível da decisão política que devemos falar... Portugal tem de fazer política europeia".
Meu Deus, que arraso! Nunca criticando o Governo, com uma serenidade admirável, desmontou a argumentação que sustenta um conjunto de medidas para as quais se diz não haver alternativa.
E tornou claro que o papel de bom aluno que o Governo assumiu não é o mais adequado.
Como muito bem diz o povo na sua imensa sabedoria, o pior cego é o que não quer ver.