A política industrial da União Europeia 2030: Reindustrialização ou bluff?!
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Volto ao tema da política industrial da economia europeia para o atualizar à luz dos acontecimentos mais recentes, em particular, a guerra da Ucrânia e as sanções associadas, a inflação e os juros altos, a crise global nas relações entre o ocidente alargado e o universo sino-russo. O propósito inicial é fácil de enunciar e compreender, trata-se de criar um triângulo virtuoso entre a transição ecológica, a transição digital e a transição industrial, isto é, um triângulo virtuoso que crie externalidades favoráveis a uma reindustrialização da economia europeia.
No plano da transição ecológica o objetivo principal é criar uma aliança europeia para uma economia de baixo carbono e a caminho do hidrogénio. Até lá, o caminho faz-se de poupança e eficiência energéticas, medidas de descarbonização e uma nova matriz energética onde prevalecem as energias renováveis. No mesmo sentido, é preciso cuidar dos impactos energéticos e materiais (as chamadas terras raras) da transição digital, promover e aplicar os princípios da economia circular e colocar a biodiversidade e a restauração de serviços de ecossistema na base da estratégia de transição.
No que diz respeito à transição digital, trata-se de colocar o digital ao serviço das novas redes de energias renováveis, da mobilidade elétrica e intermobilidade nas cidades inteligentes, ao serviço da ciência e inovação nos projetos empresariais e na respetiva capacitação pessoal, ao serviço da natureza e do ambiente, das economias de proximidade e os consumos partilhados, ao serviço da cibersegurança e a privacidade dos cidadãos.
No que diz respeito à transição industrial e a uma eventual política de reindustrialização, sabemos, desde logo, que a transformação digital e a inteligência artificial alteram progressivamente os processos e procedimentos industriais e mudam a posição relativa dos principais atores da cadeia de valor, substituindo gradualmente os bens industriais pelos serviços industriais e a aquisição/propriedade de produtos finais pela prestação de serviços e esta cada vez mais em regime de outsourcing. Neste contexto, a transformação digital e a inteligência artificial podem facilitar a relocalização, o regresso a casa de indústrias ou empresas que tinham sido deslocalizadas por razões de competitividade-preço e que agora já não fazem sentido ou fazem cada vez menos sentido.
Sabemos, também, que a transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo decisivo para o cumprimento de objetivos e metas de reindustrialização no que diz respeito à economia verde e à economia azul. No primeiro caso, nos programas de economia circular e nos roteiros para a descarbonização da economia. No segundo, na estruturação da economia azul, não apenas na organização e gestão das futuras áreas de paisagem protegidas da nossa zona económica exclusiva alargada, como nas atividades da economia do mar e na monitorização dos eventos das alterações climáticas que irão ocorrer no mar oceano português.
Sabemos, ainda, que a modernização tecnológica pela via digital é uma transição com várias velocidades e muitos protagonistas. A transição em curso vai desde a investigação em novos materiais e nanotecnologias até à computação quântica e desde as múltiplas formas de inteligência artificial até à reforma das instituições que têm de lidar com esta nova e complexa realidade. Doravante, porém, o conhecimento será um recurso cada vez mais abundante, barato e distribuído, e esta é uma enorme oportunidade para pessoas e territórios esquecidos e abandonados que, assim, poderão lançar e iniciar um novo ciclo industrial.
Sabemos, finalmente, que a União Europeia tem imensos problemas pendentes e, neste momento, ainda não sabemos se quer voltar ao antigo normal ou se quer, decididamente, iniciar um novo normal pós-guerra, uma grande transformação, para a qual precisa de um outro sistema operativo. O programa de recuperação económica é apenas, por enquanto, um programa de recuperação para uma circunstância excecional. Por isso, eu pergunto, o que pretende a União Europeia quando fala em reindustrialização? Um simples voto piedoso, inconsequente, um bluff, ou uma intenção firme e deliberada?
Para servir de referência à discussão, lembro alguns instrumentos de política pública que podem ser consagrados por esse novo regime europeu de política industrial: mais e melhor harmonização fiscal entre Estados membros, novos impostos e taxas europeus, apoios específicos à recomposição setorial (consórcios empresariais) e geográfica de cadeias de valor (cooperação inter-regional) e à cooperação de PME nesse contexto, um outro regime de concorrência ajustado à política de reindustrialização, o apoio à formação de campeões europeus nas áreas do 5G e da transformação digital, a criação de distritos industriais e sistemas produtivos locais no quadro da política de coesão territorial, enfim, o lançamento de instrumentos financeiros dedicados como um fundo europeu de investimento industrial, um fundo de transição justo para a transição ecológica e uma linha de apoio do banco europeu de investimentos aos novos modelos de negócio empresarial em matéria de reindustrialização.
Entretanto, sucedem-se os acordos, os pactos, as leis, as convenções, as cartas, as declarações, as estratégias. Já lá vão os acordos do clima, a estratégia europeia de biodiversidade 2020, com resultados minguados, agora é a estratégia de descarbonização para 2030 e 2050, mais a década das Nações Unidas sobre a restauração dos ecossistemas. A narrativa política sobre as grandes transições existe, mas este é o tempo da geopolítica europeia e mundial e as dúvidas pairam sobre a eficácia e efetividade da política europeia nestas matérias. Senão, vejamos:
- Neste momento não é claro o relacionamento futuro entre os três blocos (1) – EUA, CHINA, UE – nos planos multilateral e comercial; um clima frio EUA-CHINA favorece a política industrial europeia, um clima mais ameno devolve-nos à anterior normalidade;
- Neste momento não é claro o modo de levar à prática a próxima fase de harmonização fiscal europeia e, também, a nova fiscalidade europeia (2) como fonte de mais recursos próprios; por exemplo, não é claro o modo como a União Europeia assumirá o problema da extraterritorialidade (evasão e fraude fiscal) das grandes empresas multinacionais no mercado único europeu;
- Neste momento, em plena guerra da Ucrânia, não é claro qual a estratégia de defesa e segurança da União Europeia (3): a coordenação europeia das forças armadas nacionais, um comando Nato na Europa, um comando europeu de um contingente permanente de forças armadas nacionais na União Europeia;
- Neste momento não é claro qual será a filosofia política do futuro programa de condicionalidade macroeconómica europeia (4) e, nesse contexto, a condicionalidade da futura política de reindustrialização;
- Neste momento não é claro qual o entendimento e alcance das reformas industriais dentro do mercado único europeu (5) e, em especial a evolução das políticas nacionais de ajudas de estado, em sentido amplo, no quadro do programa de recuperação;
- Neste momento não é clara a posição da União Europeia em relação à formação dos futuros campeões europeus (6), em especial, o abuso de posição dominante de algumas concentrações industriais;
- Neste momento não se vislumbra a formação de novas alianças industriais europeias (7), nem mesmo uma forma de federalizar investimentos críticos em bens públicos europeus financiados por dívida soberana europeia, por exemplo, nas áreas mais pesadas das grandes transições do século XXI;
- Finalmente, é necessário preservar, a todo o custo, o multilateralismo e a cooperação internacional (8) sob pena de estarmos muito próximos da desordem global; estão em causa os efeitos gravosos das alterações climáticas, novas pandemias, profundas desigualdades sociais e regionais, novos fluxos de refugiados, a pobreza e a fome em muitos países que são outros tantos Estados falhados.
Nota Final
Como facilmente se observa, nada está garantido, a política de reindustrialização europeia não beneficia de uma conjuntura favorável. A geopolítica prevalece sobre a política industrial europeia e as incertezas são de monta, a saber, os alargamentos (Nato e União Europeia), a reconstrução da Ucrânia, a turbulência interna e o tempo de vida útil do regime da federação russa, o papel da China, do Sul Global e do multilateralismo onusiano, o estado caótico do mundo em desenvolvimento. E agora, também, a guerra no Médio Oriente.
Em conclusão, falta à política industrial europeia um conceito e uma estratégia, se quisermos, uma polity, uma policy e uma politics, ou seja, entre o simples ato de investir no mercado único das quatro liberdades e um regime burocrático de política industrial europeia cheio de condicionalidades existem muitas opções intermédias que devem ser ponderadas com conta, peso e medida de modo a evitar que se criem novas burocracias de acesso e outras tantas discriminações e segregações. Reindustrialização europeia, uma intenção firme e deliberada ou um bluff? Neste momento, não sabemos.