Quando, na madrugada de 24 de fevereiro, despertei com a notícia da invasão da Ucrânia pela Rússia, o meu primeiro pensamento foi, naturalmente, para a tragédia que se abatia sobre a Europa. Porém, como aos primeiros bombardeamentos bélicos se seguiram, de imediato, os bombardeamentos noticiosos, o meu pensamento foi para a verdade da guerra. Desde então, a questão da verdade da guerra tem dominado os meus dias. É impossível assistir à guerra dada pelas televisões, rádios, jornais e redes sociais, e não refletir sobre o que é verdade e o que é mentira.
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O conceito de verdade tem sido sujeito a múltiplas interpretações filosóficas ao longo dos séculos, desde a Antiguidade Clássica à Época Contemporânea, mas a análise crítica que melhor responde ao problema da verdade na atualidade é a de Phillip Knightley, o jornalista-historiador que conferiu um novo sentido à afirmação do senador americano Hiram Warren Johnson, que, em 1917, declarou que «a primeira vítima, quando a guerra começa, é a verdade».
A verdade, reclamada pelos cidadãos e pela imprensa, vigiada, escondida, e censurada, ou até substituída pela mentira, pelos Estados, como temos verificado nos dias de guerra na Ucrânia, é uma verdade comprometida pela guerra. A verdade, enquanto reprodução da realidade pela imprensa, não existe. O que existe é uma realidade reconstruída através do jornalista, do modo como o jornalista observa e se relaciona com os acontecimentos, o tempo e o espaço em que os acontecimentos ocorrem, com as fontes, e da forma como relata essa realidade.
É esta verdade reconstruída que tem levado alguns historiadores, a estudarem "a representação que [...] as sociedades têm de si próprias e das outras", bem como a multiplicidade dos esforços utilizados por todos os atores do "jogo" (da guerra) para modificar esta imagem de acordo com os seus objetivos. Não tenhamos dúvidas de que assim é no atual conflito na Ucrânia.
A história da liberdade de imprensa, como veremos, mais uma vez, nesta guerra, é também a história da distinção que se estabelece progressivamente entre os segredos de Estado e as notícias divulgadas. Nas guerras mundiais do século XX, quando foi preciso guardar segredo, ou os jornais exerceram uma espécie de autocensura e calaram o que sabiam, ou os Estados decretaram a censura, impedindo os jornais de publicarem as notícias consideradas contrárias ao superior interesse da Nação.
Nesse contexto, a imprensa, em tempo de guerra, transformou-se ora num espelho do "jogo" político, ora em protagonista nesse "jogo", dando-o, em reflexos, aos leitores e ajudando a construir a opinião pública a partir desses reflexos e não dos factos. A tensão entre a imprensa e os governos dos Estados acentuou-se sempre em tempo de guerra e os Estados protegeram-se através da censura e da propaganda. Nesta guerra, estes mecanismos de censura e de propaganda também estão em ação.
Por estes dias, no ocidente, temos ouvido falar do controle da imprensa (censura de guerra) e da manipulação dos factos (propaganda de guerra) desta guerra por parte da Rússia. Se estivéssemos na Rússia, ouviríamos a acusação de manipulação atribuída à Ucrânia, à União Europeia e aos Estados Unidos da América. É assim em tempo de guerra. Os beligerantes usam todas as armas disponíveis a seu favor, incluindo as que utilizam "balas de papel". Este não é um fenómeno novo. É, aliás, um procedimento tão antigo quanto a existência da própria guerra. Os Estados beligerantes introduzem a censura mas, como esta não basta para convencer a opinião pública, implementam a propaganda com o objetivo de persuadir as pessoas das suas razões - da sua verdade.
No conflito atual, a Rússia invadiu a Ucrânia e, de imediato, proibiu o uso de determinadas expressões - como "guerra" ou "invasão" - pelos órgãos de comunicação social, provocando o encerramento da comunicação social russa independente e a retirada dos media estrangeiros. Como essas medidas não foram suficientes para calar os manifestantes russos contrários à invasão da Ucrânia, o governo russo incrementou a propaganda, através de ações diversas como a distribuição de comida aos ucranianos nas zonas ocupadas, assim procurando criar uma imagem positiva junto do povo ucraniano.
A propaganda é um dos mais poderosos instrumentos de guerra no mundo moderno, porque influencia a opinião pública. Hoje, como em nenhuma outra época, o impacto da propaganda é incomensurável, devido à existência de numerosos órgãos de comunicação social, mas sobretudo às redes sociais que difundem informação a uma velocidade impossível de acompanhar com o distanciamento crítico que a aferição da verdade exige aos jornalistas, cientistas sociais e cidadãos comuns.
Esta situação é ainda mais séria quando estamos perante notícias falsas divulgadas como verdadeiras, o que acontece em todas as guerras e este conflito armado na Ucrânia não foge à regra. Desde imagens televisivas de guerras anteriores a fotografias de outros conflitos bélicos, há muita informação falsa ou, pelo menos, manipulada, a circular sobretudo nas redes sociais.
Então, como sabemos o que é verdade ou o que é mentira? Para aferir a veracidade da informação, podemos sempre verificar as notícias e as imagens através de uma pesquisa relativamente simples na internet. Porém, enquanto a guerra durar, não temos como averiguar, com um grau de certeza inabalável, a verdade da guerra. Esta será a tarefa do historiador... no futuro.
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)