A privatização silenciosa do Estado. As (más) lições de França
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Com a França a implodir em Matignon (sede do Governo) e a dividir-se à vista de todos nas ruas onde muitos se manifestam contra as políticas de Macron, dois jornalistas, Matthieu Aron e Caroline Michel-Aguirre, fazem chegar agora às livrarias um livro que revela parte das razões para as terríveis contas públicas do país: anualmente o Estado gasta 270 biliões de euros em ajudas públicas a grandes empresas, multinacionais e a magnatas. Sem disso haver grande escrutínio.
"Le grand détournement - comment milliardaires et multinationales captent l"argent de l"État" é o título de um livro que promete acentuar uma polémica que, nos últimos, dias, cresce em França. Investigando detentores de grandes fortunas, os jornalistas explicam de que modo estes aproveitam mecanismos públicos para obter deles apoios, enriquecendo substancialmente enquanto o Estado fica cada vez mais sobrecarregado. Trata-se de um sistema quase institucionalizado de favorecimento que se desenvolve sem regulares contrapartidas de prestação de contas. Ou seja, muitas vezes as ajudas são concedidas sem exigência de níveis de desempenho, sem obrigações de manter empregos ou investimento no país. Isso significa que esses benefícios podem ser aplicados fora do país. O livro tem pormenores que nos deixam boquiabertos sobre o modo como sucessivos governos podem gastar tanto (e de forma tão arbitrária) com tão poucos (que já têm muito). Para além da denúncia, os dois jornalistas levam-nos a repensar mecanismos de controlo e na necessidade de exigir do Estado maior transparência e responsabilidade.
Matthieu Aron e Caroline Michel-Aguirre são também autores do livro "Les infiltrés - comment les cabinets de conseil ont pris de contrôle de l"État", que revela como as grandes consultoras se infiltram na máquina do poder político, influenciando decisões e estratégias, criando assim, em modo silencioso, uma privatização das políticas públicas. Eis aqui expostos de forma clara os graves riscos da terceirização do Estado.
Estas duas obras deveriam ser lidas com atenção, pois os problemas que relatam facilmente se refletem sempre que o poder político se apoia de forma excessiva no setor privado. Em áreas críticas (como as da saúde, da energia, da defesa, entre muitas outras), a terceirização de funções sensíveis, aliada à concessão de benefícios sem contrapartidas e à ausência de uma fiscalização rigorosa, pode comprometer gravemente a eficiência do Estado e minar a confiança dos cidadãos nas suas instituições. Ora, é isso que governos de regimes democráticos precisam de evitar, garantindo que o interesse público prevalece sempre sobre os interesses privados.