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Uma reforma causa menos danos colaterais do que uma revolução, diz-se. Por isso mesmo os reformistas dão o tiro de partida dentro do sistema, tentando modifica-lo internamente. Já os revolucionários tendem a vir de fora para dentro para definhar o 8 e impor o 80, sendo que a ordem dos dígitos é arbitrária. Se o que a ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz pretendia era uma reforma do sistema judicial, enganou-se redondamente. A ministra é, inadvertidamente, uma revolucionária sem revolução. Nem 8 nem 80, parou ao primeiro sinal de stop. O sistema informático faliu e, com a sua falência, não se faz Justiça neste país há 16 dias. Há quem diga que o problema da Justiça em Portugal já vem de trás mas agora tem um rosto e tem um nome: Citius V2.
Desde que o Estado de direito se suspendeu há cerca de 15 dias, ministra procura-se. Supondo que não será ela a informática de que o Citius precisa dia e noite, não podemos aceitar que se ausente em parte incerta sem assumir o descalabro e dar explicações, até porque haverá explicações a dar tendo em conta que não houve falta de avisos. Se a ministra sabia das fragilidades do sistema por que não encarou o problema deixando a bomba rebentar-lhe nas mãos no dia 1 do seu tão querido novo mapa judiciário? No fim de Agosto já não se acedia ao Citius. Quem está a ministra a proteger quando não se protege a si mesma? Pois não estamos, de facto, perante uma reforma. Isto é ou merece ser uma revolução.
E faz-se com parcos meios, a dita cuja revolução. Em Vila Real e Faro, contentores servem de sede própria para as novas comarcas. Em Setúbal, o procurador coordenador mandou os procuradores do Ministério Público para casa à conta das obras e do pó. A busca pelos tribunais no sistema são pesquisas absurdas a tribunais extintos. Juízes e procuradores estão impossibilitados de despachar pela plataforma informática, advogados não conseguem enviar peças processuais. Os prazos são fonte de dúvida e de contagens infinitas sem certezas dos dias e sem certeza jurídica. Ao pedido de suspensão dos prazos junta-se a típica ausência de resposta enquanto no chão dos tribunais os processos se avolumam como lixo colateral. Encontrar um processo é uma exigente caça ao tesouro e os funcionários abdicam de seleccionar o expediente já que tudo terá que ser informatizado no futuro Citius V3 e a conclusão de um processo, nos moldes actuais, poderá traduzir-se na prática de actos inúteis ou sem lógica aparente. Não há distribuição de serviço na esmagadora maioria das comarcas. Operação auto-stop. O facto da ministra já saber deste colapso anunciado e de ter ligado a luz verde só demonstra que a condução não é para todos.
Alguma reforma teria que ser feita no sistema judicial português e Paula Teixeira da Cruz tem óbvias virtudes, coragem e vontade própria. Mas após 3,6 milhões de euros gastos no aperfeiçoamento do sistema informático, uma das suas virtudes é saber esperar sentada pelo novo Citius. Assistimos a uma reforma do mapa judiciário com enorme redução de tribunais e comarcas, deslocando populações por vezes para mais de 100 km de distância. Os juízes são "movimentados" (sobretudo os do Ministério Público) num processo pouco claro onde o sistema também não funcionou, tendo que ser reformulado manualmente. Os funcionários são movimentados sem terem sequer concorrido e com o desdobramento dos tribunais são obrigados a deslocar-se para onde os mandarem. Todos estão em causa: a fragilidade instala-se quando percebemos que a efectividade é apenas um suspiro antigo, desmontável pela conveniência do serviço que coloca quem quer que seja onde quer que for.
Os tribunais não "estão a funcionar" como afiança Passos Coelho. Felizmente que as suas declarações estão gravadas para memória futura. Caso contrário bastaria entrar num tribunal e pedir que o gravassem em cassetes ou cd, já que o novo sistema de gravações digitais também faliu. É com o arcaico sistema de gravações que têm funcionado alguns processos urgentes (como os sumários, primeiros interrogatórios de arguidos detidos, processos de promoção e protecção de menores). Todo este sistema de gravação é, inclusivamente, de duvidosa legalidade e não faltará quem a invoque face à lei existente. Mas de que vale a lei se não existe Justiça e se a Justiça só se faz certa no tempo certo? "You say you want a Revolution, well, you know, we all want to change the world", cantavam os Beatles. Vemo-nos no Citius V3.