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A decisão de reduzir o papel do Estado no financiamento e prestação de cuidados de saúde e aumentar o papel dos privados é, claramente, de foro político. Naturalmente, visões mais à direita tendem a diminuir a responsabilidade do Estado em matéria social e visões mais à esquerda tendem a manter um papel relevante do Estado neste direito. Contudo, a discussão do papel do Estado no financiamento e na prestação de cuidados de saúde deve ser discutido separadamente, considerando que têm implicações diferentes. O exemplo mais claro de prevalência de financiamento privado de cuidados de saúde ocorre nos EUA, sendo que os gastos em saúde em percentagem do PIB são elevadíssimos (16,6%, segundo o The Commonwealth Fund), ao mesmo tempo que se mantém uma fatia significativa da população sem cobertura de saúde. A evolução do sistema de saúde Norte-Americano, com o ObamaCare, parece seguir no caminho de uma maior intervenção do Estado na saúde. Neste contexto, está por provar que o financiamento privado da saúde é mais sustentável e eficiente que o financiamento público. No que a Portugal diz respeito, conforme os dados da OCDE Health Data 2021, tem vindo a colocar mais peso no dinheiro pago pelo cidadão na altura do consumo (out-of-pocket), cerca de 30%, ao mesmo tempo que reduz a percentagem do PIB alocado ao financiamento do Estado, que se encontra atualmente 0.4 pontos percentuais abaixo da média dos países da UE. Este caminho não tem problema se significar um aumento do mercado de serviços suplementares e complementares prestados pelas instituições de saúde privadas, mas pode traduzir-se em dificuldades na acessibilidade aos cuidados caso estes pagamentos estejam a ocorrer no core dos cuidados que o cidadão deve receber.
No que se refere à prestação de cuidados poder ser concessionada a privados isto gera uma discussão mais ampla e dependente da força e sensibilidade dos mecanismos de regulação existentes. Também, não podemos esquecer que entregar a totalidade de uma fatia de cuidados ao setor privado pode e certamente provocará o controlo total e inegociável do respetivo financiamento deixando o Estado cativo e dependente das sociedades privadas (exemplo da hemodiálise) que existem para produzir lucro e sem, muitas vezes, colocarem em primeiro lugar o interesse do cidadão. Se considerarmos que o aumento da participação privada implica uma redução da participação pública não existem garantias do reforço da respetiva cobertura universal. Um aumento da participação privada criará dificuldades significativas numa classe média com salários baixos, com sobrecarga da inflação galopante, e será um forte condicionador da procura de cuidados de saúde. A maioria dos seguros de saúde em Portugal têm coberturas irrisórias e claramente insuficientes no caso de doenças graves, raras, ou que necessitem de intervenção complexa e de resultados relativamente imprevisíveis. Acresce que o aumento da prática privada contribui, naturalmente, para um aumento da iniquidade no acesso a cuidados de saúde. Um exemplo de um fenómeno de iniquidade foi o acesso privilegiado a cuidados de saúde dos beneficiários da ADSE que, beneficiando de um seguro público, puderam usufruir de prestação de cuidados privados com um acesso facilitado. Assim, ainda que possa melhorar o acesso, não contribui para construir equidade para o sistema.
Não se conhecem estudos que comparem ganhos de saúde obtidos no público em comparação com o privado. Esta inexistência de comparação ocorre porque os indicadores que as instituições utilizam para avaliação da sua atividade não são os mesmos, e na maioria das vezes centram-se em indicadores de processo e não de resultado. Acresce que os doentes com intervenção mais complexa e de maior gravidade são, na maioria das ocasiões, transferidos para o sector público, ou simplesmente não são atendidos no privado, deixando as instituições privadas com doentes com menor complexidade. Neste contexto, é difícil comparar alhos com bugalhos, como diz a expressão popular.
Nada leva a crer que o aumento da participação privada no financiamento e prestação de cuidados de saúde produza por si só aumento da qualidade. Existirão prestadores públicos e privados com qualidade diversa. Contudo, é conhecido que, em algumas áreas, a prestação privada conduziu a maior desperdício e consumo de recursos financeiros ao cidadão, ao mesmo tempo que se traduziram em maior risco para esse. Um exemplo claro é a percentagem de cesarianas realizadas no sector privado que duplica, em alguns casos triplica, o recomendado internacionalmente. De facto, em algumas áreas em que o pagamento por ato prevalece, existe uma tendência natural do sector privado em aumentar o número de atos, ainda que clinicamente estes não sejam justificáveis. Neste sentido, falhando a regulação adequada, a prática no sector privado pode tornar mais ineficiente o desempenho do sistema de saúde, com consequências para a saúde da população.
*Professor universitário e ex-bastonário da Ordem dos Enfermeiros (2012-2016)