Há uns anos, num colóquio sobre direitos humanos, defendi que os reclusos, independentemente da pena a que foram condenados, devem ser tratados com respeito pela sua dignidade pessoal e que todos os criminosos, por mais graves que tenham sido os seus crimes, têm sempre direito a um julgamento justo.
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A dada altura, uma mulher interpelou-me da assistência: «O senhor está aí a defender os criminosos mas eu queria saber o que é que faria se uma filha sua fosse raptada, violada e assassinada». Na ocasião, a sociedade portuguesa estava profundamente traumatizada pelo «gang do Multibanco», que, entre outros crimes, sequestrara, violara e assassinara uma jovem.
Por momentos, aquela pergunta, inopinadamente arremessada, deixou-me algo embaraçado, mas respondi com verdade. «Pois bem», disse eu, «se isso acontecesse a uma filha minha - e se eu pudesse -, matava o autor; descarregava-lhe uma pistola na cabeça ou esfaqueava-o enquanto tivesse forças». «Está a ver», retorquiu a minha interlocutora, «o senhor está aí a defender os direitos humanos para os criminosos mas só porque ainda não foi vítima deles. Se fosse, a justiça que o senhor queria já era diferente da que está aí a defender». Expliquei então que o que eu teria feito naquela hipótese sinistra não seria justiça mas sim vingança. E expliquei que, em geral, as vítimas de crimes não querem justiça, mas antes vingar-se dos criminosos. Sempre fora assim desde a mais remota antiguidade. Houve até sistemas primitivos de justiça em que os criminosos eram presos e entregues às próprias vítimas ou às suas famílias para que elas fizessem justiça. Era o sistema da «vindicta privada».
Mas a senhora não desistiu. «Diga-me então - insistiu - qual a pena que acha justa para esse crime»? Respondi-lhe que isso era relativo. Se me pusesse no lugar do pai da vítima, a pena justa seria, obviamente, a pena máxima, mas se me colocasse no lugar de pai do criminoso, seria a mínima. E ripostei: «Que pena é que a senhora acharia justa se fosse a mãe de um rapaz que cometesse esse crime»?
Esclareci que uma pena justa e adequada teria de ser aquela que merecesse o acordo, por exemplo, do pai da vítima e da mãe do criminoso. Para isso teriam de os meter a ambos numa sala a fim de encontrarem a dose punitiva proporcional à gravidade do crime e à intensidade da culpa do criminoso. Obviamente, um a exigir a pena mais pesada e outro a defender a mais leve. E como, certamente, até deixariam de se ouvir, teriam então de nomear mandatários. Mas como, mesmo assim, estes também dificilmente chegariam a acordo sozinhos, teria então de haver uma terceira pessoa, não envolvida na questão, isenta, distante, objectiva e imparcial que, em face do que ouvisse dos representantes da vítima e do criminoso, fixaria a pena justa.
É essa a essência do direito penal. A pena para qualquer crime tem de ser encontrada a partir do confronto dialéctico entre os interesses antagónicos gerados pelo próprio crime, ou seja, os interesses punitivos e os interesses de defesa. Uns e outros devem ser representados por pessoas não directamente envolvidas, que sejam capazes de olhar os factos com objectividade, sem as emoções e as paixões de quem foi atingido pelos acontecimentos. A isso chama-se um julgamento.
Um crime acarreta sempre duas tragédias: a da família da vítima e a da família do criminoso. E qualquer dessas tragédias pode, hoje, acontecer a qualquer pessoa. Porém, todos imaginamos facilmente o sofrimento dos pais cuja filha foi violada e assassinada, mas poucos são capazes de imaginar o sofrimento dos pais de um jovem que cometeu tão hediondo crime e vai ter de pagar por ele. Perante a notícia de um crime, a generalidade das pessoas tem tendência a colocar-se no lugar das vítimas e, a partir dessa visão unilateral, fazer um julgamento sumário e parcial dos acusados. Nessa posição, a distância em relação à «justiça pelas próprias mãos» é muito curta. O símbolo da justiça é uma balança e, por isso, aquela terceira pessoa (o fiel), antes de sentenciar, deve pesar (ponderar) devidamente tudo o que as partes (a acusação e a defesa) colocam nos respectivos pratos.
Infelizmente, hoje, em Portugal, em vez da primitiva «vindicta privada», prolifera uma espécie de «vindicta publica». Já não são preocupações de proporcionalidade e de adequação, que determinam a medida das penas a aplicar, mas sim sentimentos de vingança social, permanentemente alimentados pelo fundamentalismo justiceiro de muitos magistrados e pelo vampirismo mediático de alguns órgãos de informação.