Podemos olhar com cabeça fria para a querela do Governo com o Tribunal Constitucional e falar em linguagem simples do que está em causa? Julgo que podemos e devemos. Começando por notar que ela não constitui surpresa. O julgamento de inconstitucionalidade de normas do Orçamento de 2014 é coerente com os pronunciamentos anteriores do Tribunal, que os recorda. Do seu ponto de vista, as normas violam princípios básicos como a igualdade e a proporcionalidade. Isto é, repercutir sobretudo sobre os funcionários e os pensionistas os custos do equilíbrio orçamental seria discriminá-los face aos demais titulares de rendimentos. E agravar ainda mais os cortes salariais, de modo que atingissem logo a base da pirâmide, já seria torpedear a única justificação legítima para tais cortes, que era a de serem necessários, temporários e proporcionados. O Tribunal não diz, portanto, que não se possa fazer cortes e que as circunstâncias não os justifiquem. Diz que devem ser feitos com equilíbrio e não funcionarem na prática como um imposto destinado a dois grupos específicos.
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Como todas as decisões, esta é discutível. Não posso entrar no debate jurídico, entre os que sustentam o sentido de decisões que vão além da verificação da violação de normas constitucionais concretas e os que temem os efeitos de ponderações baseadas em princípios. O debate existe; e ambas as partes apresentam argumentos sólidos. Mas é ampla a maioria de juízes que tem formado as decisões do Tribunal, indo muito além dos alegados alinhamentos políticos, e ela não pode ser acusada de imoderação. Pelo contrário, quer em 2012 quer agora, formulou as decisões com tal cuidado (ou artifício) que poupou ao Governo todos (em 2012) ou metade (em 2014) dos efeitos orçamentais.
Também não surpreende a atitude do Governo. Desde o início que tomou a Constituição como um valor menor face ao programa político de alteração da repartição do rendimento, contra o trabalho e a favor do capital, e de empobrecimento geral do país (o tal "ir além da troika"). Por oito vezes já se confrontou com declarações de inconstitucionalidade, e isso não tem mudado a linha de rumo. Exatamente porque esta é tratar a Constituição - e mais geralmente o Estado social - como um impedimento.
Então, porquê esta dramatização, este crescendo de ataques ao Tribunal Constitucional, estas ameaças, mais ou menos veladas, de rutura?
A razão é só uma. Com os sucessivos limites que tem imposto, o Tribunal acaba por pôr em causa a estratégia política do Governo. É isso que este não lhe perdoa.
A verdade é que Passos Coelho e Paulo Portas bloquearam as reformas que estavam em curso, na estrutura do Estado e da economia portuguesa. Em vez de prossegui-las, apostaram tudo em isolar dois grupos específicos - os funcionários e os pensionistas - apresentando-os como os "culpados" do "excesso" de despesa e, portanto, as vítimas sacrificiais da "redenção". A fantasia da solução do problema orçamental pelo corte nos consumos intermédios, sem beliscar mais nada, foi apenas propaganda. Ganha a eleição, as "gorduras" passaram a estar nessa geração de velhos que supostamente receberia mais do que devia e nessa corporação pública supostamente mimada com privilégios a que os trabalhadores do privado não acediam. Posta assim a coisa, pensavam os estrategas do Governo, talvez o que ficasse perdido junto de funcionários e pensionistas pudesse ser minimizado com uns doces de fim de legislatura (como a reposição parcial de 2015) e pudesse ser compensado com a adesão de classes médias mais sensíveis à punção fiscal.
Esta estratégia perdeu, por duas razões. Uma foi a dimensão da crise, que tudo e todos devastou. Outra, a ação do Tribunal Constitucional, que obriga a moderar os danos infligidos aos grupos-alvo. O Governo não pode atacar a crise, que foi a oportunidade para o seu programa; mas pode atacar os juízes constitucionais, que são o obstáculo.