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Maria João Pires anunciou à jornalista Maria João Costa, da Rádio Renascença, que já não é pianista. E que pôs à venda o Centro de Artes de Belgais, antiga maravilha educativa que iluminou Castelo Branco, o seu projecto de mãos na massa.
Mais do que ter deixado de ser pianista, Maria João Pires também disse que nunca o foi verdadeiramente, se entendermos o termo enquanto rótulo de uma carreira. "Nunca tive o espírito do pianista que dá concertos, que tem sucessos, muito público e que viaja muito."
Quem a ouça, na sua simplicidade que é sinónimo de grandeza, compreende que sempre protegeu a coisa frágil e bela que vive nas pessoas que têm um dom. Não sei descrevê-la de outra maneira: uma espécie de pureza que rodeia o talento, melhor, que este exige. No talento, a infância continua para sempre. Com ela, a beleza de tocar piano sem duplicidade, sem o lastro de ideias sobre nós próprios e os outros em que nos vamos endurecendo, sem os degraus da carreira por onde se sobe em rivalidade.
O gesto de Maria João Pires é de uma imensa ambição: continuar a ser o que sempre foi. Dá a ideia de que se cansou de ser infeliz naquilo que a fazia feliz. E agora, no final da vida, quer combater o bom combate do talento dispensando as cedências, as solicitações e as adulações - mais a solidão que tudo isso implica -, mantendo a chama que é absolutamente sua.
Mas aquilo que é absolutamente seu, o Beethoven de Maria João Pires, o Chopin de Maria João Pires, e por aí afora, é também absolutamente nosso. Que digo? É absolutamente meu, e meu desde o tempo em que a minha avó Emília, sentada velha no cadeirão de couro num sumiço magro e arguto, me aconselhava a ouvi-la; desde o tempo em que, qual mistério, do quarto dos meus pais os Nocturnos caminhavam até mim.
Não sei se é possível perder-se algo sem nada se ter perdido, mas fiquei com essa sensação ao saber da reforma de Maria João Pires. No mesmo ímpeto, umas ganas impossíveis de lhe agradecer. Mandar-lhe flores, mas eu só tenho umas poucas palavras e nenhuma cresceu na terra. E se as podasse chegariam murchas.
É que, entretanto, caiu-me um peso na consciência: eu nunca ouvi Maria João Pires ao vivo. E isto agora inquieta-me, ando arrependido como se tivesse falhado. Mas talvez o melhor agradecimento - e assim as palavras não murchem com tanta facilidade e valham alguma coisa - seja, contra mim próprio, alegrar-me por nunca mais haver essa possibilidade.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia

