Do acervo de declarações que têm saído na comunicação social sobre o (ainda) atual Código de Processo Civil (CPC) destacam-se aquelas que o vilipendiam como ultrapassado e incapaz de responder às necessidades atuais.
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Destaco-as porque elas, fundamentalmente, provêm de duas origens: a ignorância ou a má fé de quem as proferiu. É moda e soa bem afirmar que um código gizado em 1939 e já com várias e profundas alterações não é capaz de cumprir a sua missão nos tempos atuais. Ignorando ou fingindo ignorar as verdadeiras natureza e finalidade de um código de processo civil, os detratores do atual convergem, assim, objetivamente, no apoio às alterações que o Governo, sob a batuta da ministra da Justiça, pretende introduzir neste importante domínio do direito.
Tais alterações assentam numa gigantesca mentira, qual seja, a de que os escandalosos atrasos dos nossos tribunais em matéria cível se devem ao excesso de garantias do velho CPC e não à incapacidade do Estado em obrigar os juízes a decidirem os processos em tempo útil.
O código ainda em vigor foi elaborado por uma comissão presidida por Alberto dos Reis, escolhido por ser o maior vulto de sempre desse ramo do direito, enquanto o que o pretende substituir foi elaborado por uma comissão presidida por um advogado nomeado apenas por ser amigo da ministra da Justiça. Mas, tentemos compreender o que está em causa.
Um processo judicial tem sempre uma tensão entre as partes; uma, a que pede justiça, quer que o processo ande rapidamente; outra, a que presta contas à justiça, quer que ele ande lentamente. No meio, está o juiz (o fiel da balança) cuja missão é, entre outras, a de gerir esse antagonismo, imprimindo ao processo a velocidade adequada, ou seja, fazendo com que ele não ande demasiado rápido para não atropelar as garantias de quem presta contas à justiça, nem que ande demasiado devagar para não inutilizar os direitos de quem pede justiça.
Atualmente o juiz tem todas os poderes para imprimir ao processo a velocidade compatível com as exigências de justiça, assim ele estivesse empenhado nisso. As grandes razões do atraso da justiça cível em Portugal estão na privatização da ação executiva que, praticamente, a paralisou, e no tempo que demoram as decisões dos juízes. Infelizmente, é frequente, em muitos tribunais, uma sentença demorar anos (repito: anos) para ser proferida. Depois de efetuados os julgamentos, alguns juízes levam anos para escrever a sentença. E todos têm de se calar perante isso, pois quem reclamar corre sério risco de perder a ação por retaliação.
Adoutrina subjacente às alterações que o Governo se propõe levar a cabo assenta na mentira segundo a qual são os direitos e as garantias das partes que impedem os juízes de decidirem em tempo útil. E, consequentemente, eliminando essas garantias e restringindo esses direitos, vão acabar os atrasos e o processo civil vai voltar a ser rápido. Nada mais enganoso. Não é aumentando os poderes dos juízes, mas sim diminuindo-os, que se consegue administrar a justiça em tempo útil. O trabalho de um juiz é decidir, ou seja, dizer o direito aplicável ao litígio judicial. Quem o não faz atempadamente deveria ser punido, pois a independência funcional dos juízes existe para eles decidirem (e só quando decidem) e não quando não o fazem. Porém, como os nossos governantes não têm coragem para tomarem as decisões apropriadas tomam as inapropriadas. É mais fácil impedir os cidadãos de recorrerem ou de exercerem outros direitos processuais do que enfrentar os juízes obrigando-os a decidirem mais depressa.
É escandaloso que haja juízes que trabalham três ou quatro vezes mais do que outros, mas sem qualquer compensação por isso - e, às vezes, até ficam atrás dos colegas inadimplentes na progressão da carreira. Não tendo coragem para enfrentar os magistrados, o Governo poderia, ao menos, motivá-los, estabelecendo prémios de produtividade, ou seja, pagando mais a quem mais trabalha. Mas, por uma mistura de cobardia e de oportunismo, quem é fraco com os fortes acaba sempre sendo (até por um mecanismo de compensação) forte com os fracos.