A reforma esquecida
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Na descrição das instituições políticas contemporâneas, o princípio da separação dos poderes já não ocupa o lugar central que lhe reconheciam as doutrinas originais do constitucionalismo. A separação dos poderes, mais do que um princípio constitucional, oferecia uma verdadeira síntese do programa político das revoluções liberais e determinava o próprio critério de legitimidade das instituições públicas nascentes.
Na "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789, a França revolucionária proclamava, no artigo 16.º, que "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição". Munida dos fundamentos que os filósofos das luzes lhe providenciaram ao longo de um século - de John Locke a Charles de Montesquieu - a teoria exprime a definitiva condenação do absolutismo monárquico ao mesmo tempo que desenha um novo modelo de governação cuja plasticidade se vai revelar compatível com as mais diversas configurações, desde a monarquia parlamentar britânica até ao presidencialismo republicano dos Estados Unidos da América. A máquina a vapor, com os seus "freios e contrapesos" (checks and ballances), foi a metáfora inspiradora da "engenharia" primitiva do estado moderno. Um "aparelho" onde cada elemento controla e é controlado por cada um dos outros, uma máquina capaz de domesticar as ambições individuais e colocá-las ao serviço do interesse comum - o poder público.
Na verdade, o declínio da teoria da separação dos poderes é um fenómeno mais aparente do que real. Os princípios da descentralização administrativa, da transparência, da subsidiariedade, da responsabilidade, da prestação de contas e da participação democrática são, de facto, múltiplos afloramentos das preocupações originais. E o Estado, enquanto construção política da sociedade, é uma máquina que requer permanente manutenção e reforma, para corrigir os vícios detetados, para eliminar disfuncionalidades e resolver problemas imprevistos.
Imaginava-se que no contexto da grave crise financeira, económica e social que assola o país, o Governo assumisse como tarefa prioritária a reforma das instituições públicas e que soubesse mobilizar os cidadãos e as outras forças políticas para essa missão. Até porque não existe outro processo racional para assegurar a redução sustentável da dívida! Mas em vez disso, lançou mão de medidas pontuais e extraordinárias talvez com a esperança de que se pudessem tornar definitivas. Agrupou algumas freguesias, extinguiu alguns tribunais, asfixiou a educação, a saúde, a Segurança Social. Multiplicou o desemprego. Condenou à penúria reformados e pensionistas e recomendou a emigração aos mais jovens e qualificados. Já com a legislatura a chegar ao fim, a reforma do Estado continua no bolso do primeiro-ministro, provavelmente, o mesmo bolso onde se esqueceu da carta irrevogável de demissão que lhe foi entregue, em tempos, pelo atual vice- primeiro-ministro. Mas o Estado de direito e todo o seu transcendente significado civilizacional, nada lhes dizem. A democracia é um fator instrumental que não faz parte da sua cultura e a barbárie não lhes mete medo.
Contudo, numa época marcada pela desregulação generalizada e pela ascensão de poderosas organizações económicas e financeiras internacionais, apenas os estados oferecem ainda uma hipótese de relevância à vontade democrática dos povos. E com o termo da legislatura, vai chegar o momento da prestação de contas e do juízo soberano da vontade popular.