As comemorações do centenário da República decorrem com normalidade. Sucedem-se estudos históricos, cerimónias evocativas, programas radiofónicos e televisivos, discursos oficiais e conferências eruditas, com espaço para algumas - poucas e civilizadas, valha a verdade - contra-comemorações.
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Os verdadeiros adversários contemporâneos da República de 1910, não são monárquicos, mas antes descendentes encapotados do Estado Novo salazaristas. Sofisticados, não se manifestam abertamente enquanto tal. Mas insinuam, subtilmente, nas entrelinhas, que a República nascida a 25 de Abril de 1974, é herdeira dos "vícios" da sua antecessora do início do século XX.
Os fundadores da República de Abril, civis e militares, procuraram afastar-se, com prudência, dos modelos do início do século XX. Evitaram o parlamentarismo puro, dotando o Presidente da República de alguns poderes que lhe permitem influenciar o decurso da vida política e arbitrar certas crises governativas ou outras. Conseguiram legitimar-se, em 1975 e 1976, através do sufrágio universal, precedidas de um recenseamento sério.
Na prática, ressalvada a fase de governação provisória, anterior à vigência da Constituição de 1976, conseguiram ultrapassar o (legítimo) receio da instabilidade, com governos e primeiros-ministros a multiplicaram-se, conforme sucedeu, não só no regime português de 1910, mas também na Itália do pós-Guerra e até à década de 90 do século passado.
Do legado do regime de Afonso Costa, António José de Almeida, Brito Camacho, o principal "fantasma" afastado, graças ao consenso dos partidos do arco constitucional - CDS, PSD, PS e PCP - foi o confronto com a Igreja Católica, apesar de alguns incidentes em volta da ocupação dos estúdios Rádio Renascença em Lisboa por facções da extrema-esquerda civil e militar.
A defesa do laicismo não resvalou, ao contrário do que sucedeu em 1910, para o anticlericalismo. A questão do divórcio foi resolvida com inteligência e sensatez, ainda na fase dos Governos provisórios, graças ao ministro da Justiça de então, Francisco Salgado Zenha, e ao titular da pasta dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares.
O Estado português e a Igreja Católica não voltaram ao regime de confusão de poderes propiciado pela monarquia e retomado pelo Estado Novo. A Concordata manteve-se. O peso da Igreja na sociedade portuguesa continua a reflectir-se num Estado a que já ouvi chamar "semilaico", devido aos laços íntimos que se mantêm entre o poder político e a instituição religiosa.
As celebrações, neste 5 de Outubro de 2010, caracterizaram-se por alguma ambiguidade. Se alguns aderiram de alma e coração, outros reeditaram, em voz baixa, as críticas da propaganda salazarista. As comemorações apelam à concordância, mas ninguém deseja que, numa democracia pluralista como a nossa, se construa um simulacro de consenso em volta do período histórico que decorreu entre 1910 e 1926.
À direita, ao centro e à esquerda, manifestam-se críticas e opiniões divergentes. Historiadores, políticos, cidadãos em geral discutem livremente a época republicana e até a relacionam, em incertas comparações, os acontecimentos de 1910 com os de 2010. Essa pluralidade de interpretações só pode significar que, tendo ultrapassado há muito os 16 anos de duração do regime consagrado pela Constituição de 1911, a República portuguesa, nascida em 1974, permanece viva e, apesar das crises conjunturais, não se vislumbra que venha a ser posta em causa nos próximos tempos.
