A derrota de Eric Cantor, um político conhecido e importante, nas primárias do seu partido causou surpresa. O adversário, até então desconhecido, centrou a sua campanha na acusação de que Cantor seria uma plataforma para a grande finança e as grandes empresas conseguirem o que pretendiam, traindo os interesses dos eleitores. Foi uma vitória das bases, desencantadas com os jogos políticos e um regresso aos valores fundadores da democracia. Conversa de esquerda, certo? Errado! Dave Brat, o vencedor, provém da ala mais radical do Partido Republicano, o chamado Tea Party. Algo parecido sucedeu nas eleições europeias com partidos que, por cá, apelidamos de extrema-direita. O combate à corrupção, o ataque à classe política dominante e ao peso (e preço) do Estado são pilares que partilham e encontram eco entre a maioria dos eleitores. É um facto! Que fazer? Qualquer que seja o caminho, desaguamos sempre na reforma do Estado.
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A relação dos cidadãos com o Estado é, em si, contraditória. Por um lado, defendem a manutenção dos "direitos adquiridos" e a ampliação da base de serviços, tendencialmente gratuitos, prestados. Por outro, reclamam contra o peso dos impostos e taxas. A incoerência entre estas duas posições encontra solução num mítico "eles" (os políticos, os grandes interesses), verdadeiros vampiros que sorveriam grande parte dos recursos, impedindo a sua utilização para os fins a que estariam destinados. Os políticos responderam ao primeiro apelo, criando uma entidade mastodôntica e disfuncional, e foram adiando a consequência. Até ao dia em que... O resto da história sabemo-la de cor.
No início do século XX, Marshall dizia que o Estado era a maior criação humana. Para a preservar recomendava que não fizesse aquilo para que, em cada tempo e lugar, não era especialmente qualificado. Na voragem da reeleição, poucos foram os políticos que seguiram essa regra. Ao procurar atender a todos os interesses, o Estado encareceu, perdeu funcionalidade e reputação. A popularidade da ideia do dia da libertação do Estado (dia em que passaríamos a trabalhar, e ganhar, para nós) prova-o, mesmo que a Comunicação Social faça um aproveitamento desavergonhado e incompetente do sound bite. Não lhes ocorreu que aquilo era uma média, que havia uns que já tinham deixado de pagar e outros que continuariam a descontar para pagar os serviços que o Estado presta e que, como é óbvio, há sempre um custo. Ao primeiro que encontrou, perguntou o que achava. Em muitos casos, percebe-se que os poucos impostos que pagarão são os indirectos mas, mesmo esses, são muitos, pois claro!
Estas reportagens, descuidadas e pouco profissionais, podem parecer inócuas. Não são! Vão, lenta mas seguramente, criando um campo onde podem medrar ideias perigosas. São um sinal dos tempos. Compete-nos "dar a volta ao texto" e colocar a discussão no plano certo.
Como diria Esteves Cardoso, os portugueses (e não só!) andam arreliados. As suas suspeições pedem mais informação e transparência, para que os "eles", que dariam sumiço aos recursos, possam ser identificados ou desmistificados. Essa é a única forma de acabar com a acusação fácil, ela própria alimentada por grupos de interesses, cujo propósito é evitar renovar a organização e funcionamento do Estado. O BPN custou imenso dinheiro? Sem dúvida. As PPP poderiam ter sido mais bem negociadas? Não duvido, mas as estradas teriam sempre de ser pagas. Há rendas excessivas na energia? Quanto se poderia poupar? Façam-se as contas para os cenários mais idílicos e sobrará, sempre, uma dívida enorme.
Para que a democracia sobreviva, o Estado vai ter de mudar. Ser menos paternalista, omnipresente e intrusivo. Pedagógico em vez de autocrático. Delegar e descentralizar. Regular e supervisionar. Aproveitar as novas tecnologias. A sua reforma constitui, para alguns, a verdadeira revolução do nosso tempo. Vai requerer os acordos comuns nos países da OCDE. Há o guião Portas. Talvez fosse preferível evoluir do mais simples (quais as funções nucleares e indelegáveis) para o mais complexo, onde as opções políticas se expressam. Nada fazer não é escolha!