Aconteceu eu ficar com uma rosa que era para o Marco Paulo. Ainda está no porta-luvas do meu carro: a flor ia tão decididamente para ele que, entretanto, talvez tenha fugido a pé. Pelos cantores, até as rosas são capazes de andar.
A Rua Maria Pia é a maior de Lisboa, longa de alcatrão e gente. Como a subo todos os dias, mal a vejo. Menos há uns dias, quando o carro se apanhou lento e, a meio da rua, uma velha senhora me acenou e eu acenei-lhe. O carro parou e a senhora perguntou-me se eu a deixava entrar. "É para o cemitério, se fizer o favor."
Vestia quase pijama quase farda, trazia um saco de plástico azul e um certo ar belo de quem não se olha ao espelho. Eu levá-la-ia para onde quisesse, até para o cemitério. "Tenho lá o meu compromisso de sábado de manhã", explicou-me.
Subimos a rua a caminho dos Prazeres enquanto ela afagava o saco no colo como a uma cabeça. "O meu rico..." O rico dela quem? A senhora deteve-se num ora quem havia de ser característico dos que amam. E achocalhou o saco, um tanto impaciente, a pôr em ordem as coisas ordenadas: já me mostrava. Então, tirou um papel dobrado em quatro e abriu-o sobre o tabliê. O cartaz gasto anunciava um antigo concerto.
Imaginei-a há mais de quarenta anos, enlaçada pela primeira vez a um amor que continuaria daquela noite em diante. E ei-la no meu carro, um velho amor durando num luto apaixonado.
Por instantes, invejei os cantores. Ninguém desmaia à vista de um escritor, ninguém chora assim por um pintor, ninguém sente pelos outros artistas tal companhia desacompanhada. Ninguém ninguém (a única canção dele que conheço bem).
Depois chegámos ao cemitério. A senhora apontou a cara do Marco Paulo no cartaz e repetiu que não falhava uma visita. Por causa das saudades, todos os fins-de-semana lhe punha uma rosa na campa. Nisto, dobrou o cartaz e disse-me: "Mas hoje é diferente."
Do saco tirou uma rosa que era um tufo de papel de seda colado a um arame grosso. "Sou eu que faço", sorriu-me. Decerto uma rosa verdadeira desabrochava todas as semanas no espírito desta mulher enquanto ouvia as canções.
"Era para ele", esclareceu. "Mas hoje abro uma excepção por causa da boleia", disse, guardando-a no porta-luvas. Depois saiu à pressa, rumo à campa do Marco Paulo. E eu, tendo recebido a rosa dele, descobri que há outros artistas ainda mais invejáveis do que os cantores. Os motoristas.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

