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A roupa-velha é um prato requentado muito apreciado. Faz-se jus ao cansaço da Consoada e aproveitam-se os restos do cozido da véspera. Estamos todos a contar e sabe-nos bem. Mas será a única altura. Em qualquer outra situação requentado quer dizer e "sabe" a velho, esperado, já cozinhado ou usado.
Nessas condições, é bom de ver, come-se por falta de alternativa e razões de sobrevivência.
E é essa a sensação com que entro em 2014. Face ao discurso público com que os nossos governantes nos brindaram durante e no final/começo deste ano, 2014 saberá a roupa-velha meses e meses antes do próximo Natal.
O discurso de Ano Novo proferido pelo sr. presidente da República foi a esse respeito liminar.
Retive, em essência, a ideia de que dificilmente nos safaremos se não houver compromisso político sendo que, publicamente a eficácia da sua ação a este nível se ficou por dois discursos. O primeiro, corajoso mas fora de prazo, e o segundo, o de agora, uma espécie de lava mãos para fundamentar o "eu bem avisei" que não deixará de vir. Uma conferência comemorativa de Abril que ressuscite o pacto nacional desses tempos é um entendimento mais do que minimalista dos poderes do Presidente da República em Portugal. É apenas uma confissão de impotência.
Não percebo mesmo o único tom positivo que descortinei no citado discurso, o que afirma solenemente o fim da recessão.
Se é verdade que mau grado a decisão do sr. PR o OE2014 será enviado para fiscalização sucessiva, de que nos servirá o fim da recessão face a uma possível declaração de inconstitucionalidade que vale cerca de mil milhões de euros?
Portanto, ficamos nas mãos dos nossos empresários (pequenos, grandes e micro) que sustentam a entrada de receitas, nas mãos do Governo que nunca mais consegue reformar estruturalmente o Estado, sobrevivendo dia a dia com orçamentos familiares mais apertados e medo do que aí vem.
Assusta sobretudo a falta de discussão sobre o tal período pós-troika que será ou não sem troika, mas é já para daqui a uns escassos seis meses. Seria melhor antecipar a comemoração de Abril e acertar o tema da conferência anunciada para aquilo que devíamos dominar e não vir a sofrer, por ingerência alheia.
Assusta sobretudo a facilidade com que esse tempo se vai escoar a resolver os exames dos professores, os cortes nos custos do sistema nacional de saúde, a extinção de tribunais e outros serviços públicos, sobretudo em terras do interior, a preparação da campanha eleitoral para as europeias e o aquecimento para o lançamento de tantos candidatos presidenciais.
Não discutimos o futuro, esperamos que seja melhor - como dizia o Santo Padre - só porque é futuro, atolamos o presente do que devia ser já passado, tudo debaixo de um murmúrio solene a convocar consenso.
Restam os portugueses. Os que lutam e se superam apesar da falta de líderes temerários e inspiradores. É notória a ativação da sociedade civil nestes tempos difíceis. Muito mais do que nos idos do corporativismo de Salazar ou dos excessos ideológicos da revolução, os portugueses, novos e velhos, mobilizam-se hoje mais do que nunca para ajudar a pagar, a alimentar, a estudar, a fazer companhia, a limpar, a fazer recados, a todos os que têm ainda menos do que nós, num exemplo extraordinário de ação cidadã, próxima e solidária.
Tenho para mim que a próxima geração a chegar ao poder será uma geração marcada pelo descrédito na política da "vida habitual" e fortemente capacitada para encarar o que é essencial, convocando ideias e desconcentrando soluções.
Se tivesse de formular um desejo, muito para além dos discursos no éter, pediria a cada português que se engaje na resolução dos problemas da sua família, do seu bairro, da sua paróquia, do seu grupo de amigos.
O universo de quem nos rodeia, de quem conhecemos pelo nome e a quem podemos tocar.
Se quem manda estiver atento, contagiar-se-á por essa energia resistente, solidária e criativa.
E quem é mandado perceberá que há, de facto, vida possível para além dos discursos, das contas e das troikas.
Como diz Adriano Moreira, a vida na comunidade dos afetos, o mais importante pilar da nossa coesão e soberania nacional.