A sátira e o terrorismo
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A sátira é um exercício artístico de crítica social. Digamos, com a metáfora roubada à física, que a sátira é uma "sublimação" da violência. É agressiva, violenta por vocação, e as suas vítimas, em vez de se deslumbrarem com a genialidade da inspiração artística ou reconhecer o acerto da denúncia, tendem a não ver nela mais do que a provocação, o insulto, a obscenidade, a vingança, a subversão ou a blasfémia. Não há para mim melhor síntese contemporânea das diversas modalidades de sátira - magistralmente cultivada por Shakespeare, Gil Vicente, Camões ou Garrett - do que os saudosos Monty Python Flying Circus, por exemplo, em "A vida de Bryan" ou "O sentido da vida". Em 1966, a poetisa Natália Correia publicou a "Antologia de poesia portuguesa erótico-satírica" que reunia poemas dos nossos trovadores medievais, de Camões, Antero, Pessoa, Cesariny e também autores contemporâneos. A polícia política de Salazar apreendeu imediatamente todos os livros, e Natália Correia, o editor e os poetas representados na "Antologia" que ainda não tinham falecido foram todos acusados perante a justiça, julgados e condenados! Os autores transformaram-se em vítimas. Frequentemente, a sátira foi, no passado, motivo de duelos fatais e de vinganças sanguinárias.
Os jornalistas do "Charlie Hebdo" estavam bem conscientes disto e a sua coragem merece a nossa admiração. Alertada por inúmeras ameaças, a Polícia francesa estava também prevenida e por isso mantinha um aparatoso dispositivo de segurança que todavia se revelou ineficiente. Mas o ato terrorista, apesar da generalizada repulsa que suscitou, tornou-se pretexto de reivindicações oportunistas como a instauração da pena de morte ou da abolição da liberdade de circulação, medidas que insultam a memória das vítimas e que seguramente mereceriam as mais violentas sátiras do "Hebdo". Mas o calor da indignação não impediu que muitos ensaiassem uma análise fria do contexto do ato terrorista. Afinal, um esforço de racionalidade, de análise serena, de compreensão das circunstâncias que provocaram esta mágoa quase insuportável, faz parte do luto. Os terroristas proclamaram-se vingadores de uma ofensa consumada contra o seu "deus". Os terroristas, tal como um dos polícias que assassinaram, são cidadãos franceses descendentes de emigrantes e foi num bairro pobre dos subúrbios de Paris que congeminaram o seu plano criminoso. O alvo do ataque foi um órgão de Comunicação Social, e foi seguido de um outro, contra uma mercearia de produtos judaicos. Por isso se falou da liberdade de expressão, dos seus riscos e dos seus limites. Por isso se falou do fundamentalismo islâmico e da sua instrumentalização pelos terroristas. Do ressurgimento dos nacionalismos identitários. Do conflito israelo-árabe e da Palestina - que por diversos motivos se sentiram compelidos a comparecer na "marcha" parisiense do passado domingo. Da desordem política internacional. Das políticas de austeridade, do crescimento da miséria e das desigualdades sociais que destroem a cidadania democrática também no coração da Europa. Embora laterais à tragédia, nenhum destes temas se pode considerar impertinente. É precisamente contra a censura da liberdade crítica e em defesa do valor do pluralismo de opinião que o "Charlie Hebdo" justifica as suas opções editoriais, elas próprias, naturalmente, também sujeitas a permanente controvérsia. É por isso chocante que no amplo movimento de solidariedade que o atentado terrorista provocou, pretendam alguns dos bravos defensores das vítimas negar a legitimidade de certos pontos de vista ou das tentativas de interpretação que lhes sejam adversas.
Há um sinistro paralelismo entre o perfil operacional deste abominável ato terrorista e o novo modelo de intervenções militares, levadas a cabo por "nações civilizadas", contra alvos inimigos, também designadas como "assassínios seletivos". Porventura, foi a perceção perturbadora de tal coincidência o que levou o Papa Francisco a associar à condenação do ato terrorista de Paris a referência ao "terrorismo de estado". O que há de absolutamente condenável no ato terrorista contra o "Hebdo" é a violação do direito à vida e o desprezo pela dignidade humana. A lesão do direito à liberdade de expressão é "aqui" e neste sentido, um "dano colateral": - Porque a concretização desse "dano" não depende da vontade dos terroristas mas sim dos cidadãos e dos governos das nossas democracias, do discernimento da opinião pública e, claro, da coragem dos jornalistas de que a redação do "Charlie Hebdo" nos deu exemplar testemunho.?
Por isso, discutir agora a liberdade de expressão e os seus óbvios limites constitucionais, tal como qualquer um dos outros tópicos referidos anteriormente, poderia parecer deslocado e inoportuno mas a questão não é de todo irrelevante. Porque a liberdade de expressão de que falamos e de que precisamos de continuar a falar é a "nossa". A dos falantes e do seu auditório. A "nossa", como todas as instituições culturais, nasceu da história peculiar da Europa, mais tarde transplantada além-Atlântico, onde se radicalizou, também, por razões peculiares da colonização americana e dos refugiados das guerras religiosas da Europa acolhidos no novo continente. Nasceu da indignação de Martinho Lutero contra o "papado", reclamando a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e os seus direitos. E mais tarde, na outra parte da Europa - onde o Concílio de Trento conseguiu impor a "Contra-Reforma" às pretensões dos protestantes, nasceu como denúncia do terrorismo da "Inquisição" e da censura "prévia" imposta pelos tribunais do "Santo Ofício". A liberdade de expressão iria ser conquistada na Europa à custa de intermináveis guerras religiosas que devastaram os seus povos até à Paz de Vestefália, em 1648, e se prolongou até ao advento do constitucionalismo monárquico, nos finais do século XVIII e ao longo do século XIX. O Mundo é hoje muito diferente e as sociedades europeias mudaram também, na sua composição demográfica, na sua economia e na sua substância cultural. O multiculturalismo, menos do que uma corrente doutrinal, é um indício incontornável dessas mudanças. A tolerância já não é uma arma contra a servidão e o absolutismo régio. Já não é uma condição de sobrevivência entre comunidades cristãs e reinos desavindos. A liberdade de expressão reclama hoje uma tolerância adequada a universos culturais muito diversos que a economia e as tecnologias transformaram em "vizinhos" de uma "aldeia global", e é uma condição decisiva para o triunfo da paz no planeta Terra. É tempo de perceber que o fanatismo não se combate com fanatismo e que não conseguiremos derrotar o terrorismo apenas com medidas repressivas. Seria um péssimo prenúncio que a Europa não encontrasse outras respostas aos atos terroristas, senão o reforço das polícias e limitações da liberdade de circulação.