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"A maioria dos enfermeiros não percebe nadinha do doente idoso" - será a opinião de alguns, poucos, dos agentes da saúde em Portugal. Daqueles que não aceitam a assunção das competências dos enfermeiros, em nome da qualidade da prestação dos cuidados de saúde em Portugal. A estupidez, portanto.
A citação refere-se a uma intervenção, entretanto viral nas redes sociais, no Congresso Nacional de Medicina Interna, no início do presente mês. Não vou perder tempo com a ignorância e a falta de respeito demonstrada, mas gostava, ainda assim, de a utilizar para melhor ilustrar os desafios, presentes e futuros, dos cuidados de saúde de uma forma geral e, da enfermagem, em particular.
Foi criada, em Junho de 2022, a Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, constituída por 6 médicos especialistas, considerados referências na área. Tendo por missão a conclusão do processo de criação e revisão das Redes de Referenciação Hospitalar, no curto prazo, a sua ação centrou-se na mediática crise do fecho das urgências obstétricas e na falta de assistência às grávidas. Desta comissão emanou a proposta subjacente à Orientação Nº 2, de 10-05-2023, da DGS, que aponta à organização dos serviços em equipas multidisciplinares e à definição de tarefas e responsabilidades, atendendo às competências legalmente estabelecidas de cada grupo profissional, bem como aos diferentes níveis de risco das parturientes. É entendimento desta comissão e da DGS, que apenas suportado numa "melhor rentabilização dos recursos humanos e no desenvolvimento das competências de toda a equipa de saúde", será possível assegurar os cuidados de saúde de qualidade.
Fica assim claro que a emergência da realidade do estado da saúde em Portugal teve (valha-nos isso!) o condão de acelerar a aplicação da diretiva europeia 2005/36/CE. Recordo que o reconhecimento das qualificações profissionais a que se reporta esta diretiva, foi sendo transposto num longo e faseado processo, com avanços em 2009, 2012, 2014, 2017 e apenas em 2021, viu a enfermagem a sua justa reivindicação atendida na Lei Nº 31/2021. Não deixa também de ser perturbante que um dos grupos profissionais em Portugal com maior nível de escolaridade, teórica e prática, tenha tanta dificuldade em ver as suas competências oficialmente reconhecidas. Perturbador e revelador da má vontade de alguns, demonstrada uma vez mais no protesto de indignação da Ordem dos Médicos com a referida orientação da DGS ou no patético comentário que se tornou viral.
Mas, se tecnicamente, a enfermagem volta a dizer presente e a mostrar que está, e sempre esteve, preparada para assumir as suas competências na prestação de cuidados de saúde de qualidade aos portugueses, há ainda um longo caminho a percorrer na questão estratégica e de governance do próprio sistema nacional de saúde.
Apesar de ser o maior grupo profissional na saúde em Portugal, a enfermagem é sistematicamente afastada dos centros de decisão, não é auscultada nos processos de implementação das medidas, nos diagnósticos ao estado corrente das instituições ou dos cuidados de saúde. O grupo profissional que mais de perto lida com os utentes, que mais cuidados de saúde recorrentes presta, não é tido nem achado no processo de funcionamento do sistema que presta esses mesmos cuidados. Não deixa de ser irónico que a própria Comissão que finalmente autonomiza responsavelmente o trabalho do enfermeiro, não inclua um único!!
A enfermagem não pode continuar permanentemente ostracizada e tem de assumir as suas responsabilidades. É necessário que a sua classe dirigente se erga, fale a uma só voz e reivindique o justo lugar da enfermagem no processo de tomada de decisão. Isto, se quisermos salvaguardar os cuidados de saúde em Portugal e a sua sustentabilidade, presente e futura.
Voltando à estupidez, a enfermagem não deve ceder ao corporativismo bafiento, nem os seus dirigentes responder ao mesmo nível (baixo!). É preciso navegar os ventos da mudança, é necessário assentar a organização dos cuidados de saúde nas equipas multidisciplinares, onde cada um cumpre o seu papel, para Servir todos os portugueses.
*Enfermeira especialista no CHVNG e Espinho
PhD Ciências da Comunicação - Comunicação em Saúde